sábado, 15 de setembro de 2007

UMA ATITUDE DE CORAGEM


Entrei no ônibus para mais uma semana de viagem à Senador Pompeu. Que, aliás, é uma cidadezinha de pelos menos 25 mil habitantes fincada no Sertão Central do Ceará. Ir para lá tem que ser a negócio, e esse negócio eu tenho há mais de quatro anos. Mas o povo de lá é hospitaleiro, com orgulho de ter como filho ilustre um dos mais renomados contistas do Estado, senão do Brasil, Moreira Campos.
Sentei-me na poltrona marcada, e lá estava uma mulher. À primeira vista não reparei muito nela, acostumado estava pelas tantas companhias de inda e vinda nessas viagens semanais. Reparei depois até por força de uma conversa simples, amiúde como praxe de quem senta ao lado de alguém, independente do sexo. A fala veio dela, como se estivesse no script: “graças a Deus estou indo embora de Juazeiro do Norte”. Disse a mulher, e foi aí que voltei o olhar e a vi, sentada ao lado, alta, gorda, jovem com seus lá 21 anos e um olhar meio que penoso pela janela, como se despedisse ou tentasse não arrepender-se do que estava dizendo e fazendo. Fui obrigado, juazeirense que sou desde que nasci, a perguntar-lhe o porquê daquele sentimento de revolta por uma cidade tão acolhedora e boa de morar.
“A história é longa...” – disse-me meio que sorrindo e com um suspiro mais que profundo.
Com um ar de graça para que o clima fosse mais propício, rematei: “temos cinco horas de viagem, pelo menos para mim.”
Ela sorriu, e disse primeiramente que ia a uma cidadezinha praiana, perto de Fortaleza e não tinha pretensão mais de voltar. Considerei, assim, que a conversa entraria por um relato importante para um dia ter que começar essas crônicas e que a resolução da moça era forte a ponto de seus olhares rapidamente marejarem. Não quis forçar-lhe nada, até porque não era nenhum profissional de ouvidos alvissareiros ou um psicólogo suburbano. Entre aquele diálogo entrecortado por uma descida ou subida de alguém, uma parada em rodoviárias, ela comia de bolachas recheadas, e eu amigavelmente, adverti-lhe que a mesma engordava, em tom de brincadeira, uma vez que ela já era gordinha. Num sorriso coloquial e num tom mais jovial, considerou que comer era uma forma de esquecer os problemas ou atenuá-los. Ofereceu-me da guloseima, mas preferi permanecer com a minha advertência.
“Deixei o marido”, disse-me assim arrebatadora. “Ontem mesmo vendi o meu negócio, uma escola de ensino infantil, não agüentava mais.”
Debulhou um rosário de acontecimentos na sua vida, a mostrar-me a razão de estar ali, sentada numa poltrona de um ônibus com o destino, talvez, incerto, mas de uma tomada de atitude corajosa e irreparadora. Há muito que chamava a atenção do marido por não agüentar mais viver com ele, porque nunca gostara do mesmo, porque sua vida tinha sido tolhida da meninice, da juventude, da adolescência para viver submissa a um capricho do sexo, que, aliás, fazia por fazer, sem gosto, sem tesão. Ele não queria ouvir, fazia de ouvido mercador, e o tempo passava, e veio assim, a decisão solitária de amanhecer o dia, na ausência do marido, e fugir. Vendeu a escola sem ele saber, sem a mãe, parente nenhum, apenas as professorinhas e seus colegas. Sentia-se aliviada ali, sem os seus por perto, livre, solta, como se a liberdade apenas existisse na sua vida e um destino que lhe esperava longe de braços abertos.

Resmunguei um “hummmm” demorado e fiquei a pensar na coragem da jovem. Casada aos 14 pela imposição dos pais, sem gostar do esposo, sentia-se sem uma vida rotineira como os dos jovens. Sempre gostou da vida agitada e o marido, mais velho 13 anos, não. O teatro foi sua vida, apesar de ser amadora, mas que gostava de escrever peças, até tinha contos rabiscados e engavetados. Recusara convite para ir à Portugal através de um amigo da companhia de teatro. Agora se sentia bem, apesar das últimas horas vividas, e ia em busca da felicidade. Para trás uma vida que não a queria mais e na frente uma estrada asfaltada e desconhecida. Um casal amigo estava a sua espera.
Num trecho da viagem, o celular tocou, como a lhe dizer que o mundo passado não acabara e lhe fazia companhia naquele aparelho. Amigas compartilhavam sua coragem. Nessas horas nenhuma lágrima brotou dos seus olhos.
Emudeci com relação àquela história e cerrei os olhos e imaginei o futuro daquela jovem: fazendo teatro, escrevendo, com uma nova escola em terras distantes e desconhecidas, e certamente um novo amor. Um novo amor, quem sabe, já não estaria a lhe esperar, maldei.