quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O PASSADO NUNCA MAIS


“No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais

Como Poe, poeta louco americano,
Eu pergunto ao passarinho: "Blackbird, o que se faz?"
Raven never raven never raven
Blackbird me responde:
Tudo já ficou atrás
Raven never raven never raven
Assum-preto me responde
O passado nunca mais.”
Velha Roupa Colorida, Belchior

2008, Natal, final de ano e uma recordação. De tantas idas para o centro da cidade, muitas vezes evito passar pela Rua São José, entre as da Carlos Gomes e a Padre Pedro Ribeiro. Nesse trecho está, ainda, a casa 1040, com a sua segunda fachada. Foi lá onde nasci, juntamente com meus onze irmãos, mas somente quatro vivos. E, então, não podendo evitar, passei por lá esses dias e a porta estava aberta, como à minha espera, à minha passagem. Parei o carro quase que automaticamente e me veio a idéia de tirar umas fotos, sabe-se lá se os novos donos não resolvam por abaixo o que ainda resta de lembranças? Nostalgicamente perfilei-me frente a ela e aos borbotões vieram as lembranças mais que longínquas e fincadas na minha mente. Primeiro a de meu avô, pai de meu pai, numa lembrança apagada, sofrível, vendo-o doente, mas sem a presença do rosto e nunca cheguei a vê-lo, pois sequer havia uma foto dele. Depois, as dos vós maternos, que alias viviam num casarão próximo, o de nº 1085. Lembrei-me bem das janelas e portas enormes, uma calçada assoberbada e única do lugar. O pai de minha mãe lhe deu a da 1040 como presente de casamento. Mestre Duda, senhor dos sapateiros, grande mestre das alpargatas, chinelos de couro, tamancos. Se naquela época media-se o homem pela posse de casas e terrenos, ele era um dos mais opulentos. Quarteirões e mais quarteirões. Os seus produtos eram feitos com qualidade, com maestria, por isso a alcunha de Mestre Duda. Naquela época tudo o que se fazia era por amor à profissão. Analfabeto, lembrei-me que lhe ensinei as primeiras letras do alfabeto, ia deixar-lhe o chá no “capim”, lugar aonde ele ia todas as manhãs ver suas terras, um local reservado a uma lavanderia, com um enorme cacimbão, em que as mulheres iam lavar roupas. Não me lembro se ele aprendeu, porque logo o mal de Alzheimer paginou-lhe em branco as suas memórias. Já era tarde.
Voltando à casa inicial, vejo meu pai e minha mãe. Vejo Joaquim e Dezinha passando-nos lições de vida, orando fervorosamente por nós e conosco. Tudo que envolvia os dois era equilibrado pela fé nos santos e no Deus misericordioso. Vi um tempo de sacrifícios, da água que ainda não era encanada, da fachada da casa que era de taipa, das orações de joelhos de toda as noites, da espera agoniada pelas sextas-feiras ao pé do rádio à válvulas, para ouvir “A hora do mistério”, programa da Rádio Progresso. Um programa de contos misteriosos, assombrados. A partir dessa época ficou em minha mente o gosto pelos contos, pelas narrativas, pela oralidade popular. Vi uma época de vacas magras, de meu pai saindo da Indústria de Rádio (eletromáquinas), sendo o último de uma indústria falida. Vi-o consertando rádios e televisores, recondicionando motores, sendo ministro da Eucaristia, da Ordem Terceira Franciscana, a morrer de um infarto do miocárdio. Junto com ele e inseparável, minha mãe, professora de corte e costura, dona de casa de mãos fortes, de uma presença de espírito formidável, embora com um gênio desmedido. Vi-a ensinando cartas de ABC e Catecismo a milhares de crianças durante toda a sua vida. Via-a sentada na porta da cozinha cozendo, lendo orações, tricoteando, nos ensinando pontos de tricô, a cantar benditos, a afagar os gatos no colo, a dar ordens, a nos ver da cabeça aos pés, a nos vestir depois do banho e deixar-nos na calçada para ver o mundo; vi nossa mãe a clamar para nosso pai a nos bater por uma peraltice qualquer. Ouvia-a falar frases que só a ela era peculiar, ditados vários que um dia irei apregoá-los em meus escritos: “só que ser os tamancos de Roque”, “um calor dos seiscentos cravinotes”, “tai, mané, teu tio?”, “não tem nem no cu o que o canário coma”, “enxerido sem lenço”, e vários outros. Vi-a, aos poucos os seus cabelos embranquecendo, suas rugas aumentando e a memória se perdendo nos labirintos do cérebro. Hoje vive em Aurora, sem memória, sem porvir.
Olhando rapidamente para a rua, agora estendida e ladeadas de casas bonitas e atualizadas, enxerguei o lugar da casa de “D. Maria do Caréu”, uma mulher que tão bem sabia costurar, e que tinha no gogó um enorme caroço, que muitas vezes quando ela falava com sua voz rouca, me dava sustos. Não sabia que a mesma tinha uma doença já avançada: a da tireóide. Indo mais devagar, vejo a esquina, onde no bar dois homens se encontravam diariamente para bebidas e prazeres: Marcondes e Tico Bacorim. Bebiam pelo prazer, e sempre estavam arrodeados de meninos e gente simples. Pagavam bombons, guloseimas. Um dia, um homem comeu duas barras de doce de goiaba em poucos segundos, e isso fez com que os dois, divertindo-se com as bebidas viram ali uma forma de deliciar-se com as cervejas, tanto quanto pelo teatro: pagavam para rir e divertir-se. Inventaram corridas, competições entre os meninos. Rabiscavam com carvão os números de cada atleta, e aquele que chegasse primeiro a dar a volta no quarteirão ganhava uns trocados. Meu irmão Adailton Mendes, ganhava todas as corridas e dava o dinheiro à nossa mãe. Também ele plantava bananeiras, a dar voltas no quarteirão sem pôr os pés no chão. O passado nunca mais.
Tentei, quase que em vão, apesar do resguardo no canto da memória de tudo isso, ver a nós todos, irmãos e família. A casa arqueja, somente com a fachada e os escombros. Um cenário que se avulta aos meus olhos e me transporta para longe. O passado nunca mais voltará, é triste pensar assim, mas a verdade me bate nos sentidos com um sopro incomum. Qual o sentimento, ao ver o lugar, o chão, as paredes (o teto não existe mais), os fantasmas ziguezaguearem pelos escombros, pisarem um solo “sagrado” para nós os Franças e os Mendes. Fantasmas que me suplicam que jamais os esqueçam, apesar dos anos, da lida, de outras vidas alheias e que nos faz naufragar no tempo e no espaço afastados dessas lembranças que lacrimejam os olhos e a alma.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

ENCANTADO




Seguindo pelo rumo do sertão, ladeado pelos farfalhar das asas da arribação e do carcará, esta semana fui a estes sabores. Ao longo desta crônica serei enfático, repetitivo, porque encantado fiquei com o lugar. Minhas retinas, ainda não tão fatigadas, se encheram de pedras, de monólitos e de um fragor de cinza que muito delas não há de saírem. Também convoco minh´alma para saborear desse enlevo e com a minha carcaça e todos os outros sentidos também se deliciarem. Se o mar é tão maravilhoso aos olhos, essa paisagem é encantador a eles.
Na tentativa de entrevistar pessoas do setor de saúde, em Quixeramobim, fiquei com gosto na boca e de inveja por não ter que todos os dias por essa paisagem passar. Tudo que envolve os monólitos, envolve também o lugar, as gentes, os bichos, os pássaros, a imensidão do céu.
Encantado é um lugar petrificadamente encantado. Se há lugar semelhante eu não conheço. Passamos no roçar das rochas únicas, indelicadamente imóveis, fixamente invariáveis e apaixonadamente soberbas. Os caminhos que levam o menor dos seres àquele lugar são tortuosos, porém majestosos. Caminhos onde os galhos secos inclinam-se sobre as pessoas na iminência de abraçá-las, de segurá-las e dizer-lhes: bem-vindos. São galhos, pela época, que lógico ficarão verdes, que parecerem se mover, como aqueles filmes de terror, de braços esguios, balançando-se na passagem e quase a nos seguir. Não tem cores, como no arco-íris, mas tem cor única e que nos diz de prontidão quão maravilhoso é tudo ao redor. Fala-nos a cada curva, a cada roçar de galhos, e na proporção que as rochas se aproximam, lentamente, elas vão nos dando a certeza plena e absoluta de que somos seres pequenos e indefesos. A monstruosidade das rochas nos fala que devemos ser humildes e coerentes conosco e com quem nos cercam. Diz-nos que não precisamos e nem devemos fechar os olhos ao cenário incólume da sua formação e nem passarmos despercebidos à grandiosidade da natureza. Ah! Mas como passar por ali sem avistar tamanha grandeza, mesmo os cegos enxergariam, não a luminosidade, mas o sabor dos ventos temperados vindo delas.
Encantado, quem pôs esse nome ao lugar foi feliz em assim fazê-lo. Como foi interessante a idéia de se usar uma das dezenas de rochas, como um abrigo para a reunião de pessoas em torno de uma bebida e de encontros. Usou-se as duas naturezas: a da inércia dos monólitos e a vanguarda da mente humana. Não colocaria aqui a questão ecológica, mas a preservação do lugar, sim.
Encantado fiquei e tentarei sentir mais vezes, mesmo nessa minha crônica, como nas imagens ou de longe, o sabor de que as rochas não são apenas rochas, mas uma delicadeza de um dedo indubitavelmente poderoso que ali pôs em cada palmo, em cada molde.
Que o povo do lugar e aqueles que ali visitam e passam e ficam, levem consigo a certeza de que Deus existe e nós temos apenas que reverenciar e sentir de perto a sua imensa grandeza.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

FINADOS




Se há uma cidade peculiar para FINADOS, chama-se Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero e de tantos outros cíceros atuais e vindouros. O sol de início de novembro castiga todos os vivos e esquece todos os mortos. Os vivos que peregrinam pelas terras santas, agora refletem na alma o gosto agridoce na reverência aos seus mortos, aos seus entes queridos, ao passado imorredouro.
Que sol é esse que castiga, que maltrata, que faz com que os vivos busquem água, como se estivéssemos num deserto, enquanto que sob chapéus de palhas e pelos dedos que debulham os rosários se tem a impressão de que o fim do mundo está próximo? São nessas horas que se passa pelas nossas cabeças a idéia de fim de mundo, ou da certeza plena que outros Finados virão e que faremos parte de uma nostalgia comemorativa.
Sempre nessa época vejo a cara da nossa cidade com tantas outras que vêm em busca da “salvação”, da terra prometida em tempos de se clamar pelos que já se foram, como se nós nunca lá chegássemos. Vejo, pela periferia dos olhos um cenário de sol, castigo e muitos benditos. Mas, incrivelmente, vejo um amontoado de comércio que busca sobrevivência nas lágrimas dos outros. São miçangas, rosários, santos, redes, correntes, indumentárias, tudo que leva a crer que mortos nenhuns se beneficiariam com tais comercializações. E onde se encontra a verdadeira devoção pelos mortos?
Negócios à parte, é um mar de gente vindo de todo o Nordeste, em todos os veículos imagináveis, confortáveis e desconfortáveis. São cabeças e sentenças que pisoteiam o chão do Cariri numa busca incessante da redenção. Vendo, assim do alto, não se distingue quem é quem na multidão, mas se sabe que o romeiro tem sua peculiaridade: os trajes, os olhares de ansiedade, os gestos, a fila indiana. Sabemos o que ele busca, e a temeridade que se tem, é que talvez custe ainda em encontrar. Os tempos mudaram, os ares são outros, a cidade é a mesma, mas as pessoas mergulharam num mar de vanguarda que o sacro anda ao longe. Salva-se, ainda, o pau-de-arara, aquele carro antigo e suas carrancas, e as indumentárias religiosas pintalgadas aqui e ali. Salva-se a fé, embora ainda encontrem uns benditos perdidos entre uma miçanga e um copo d´água. Falta nesse tempo de finados um quê de chamar a atenção de quem morreu e deixou seu marco fincado nessa terra de homens, santos e pecadores.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

UM HOMEM, UMA TORRE E UMA BICICLETA


Uma torre, um homem desesperado, uma multidão de gente ansiosa para o desfecho final.
O tempo era a tarde, de calor sufocante, a rua mais movimentada da cidade, a torre de telecomunicação, o homem e uma bicicleta. Tudo comum, num tempo comum, onde os carros que passavam apenas deixavam ar quente, asfalto soltando poeira e fragmentos de pneus. Transeuntes que iam e vinham num percurso já há muito conhecido e necessário, numa busca incessante pelo comércio, pela necessidade diária. Os vizinhos são quase que totalmente consultórios médicos, com quase todas as especialidades existentes na área de medicina.
A rua enorme, que corta praticamente toda a cidade. Uma rua que nasceu grande, onde por ela deságuam todos os veículos, todas as pessoas, todos os movimentos, todas as passeatas, todos os políticos, todas as reivindicações, todos os monóxidos de carbono. Por ela se vai, apenas se vai, como estava indo aquele homem do começo da narrativa, com sua fragilidade mental, seus problemas, sua vontade contida e suas preocupações.
Num gesto lento, mas firme, sobe na vida através da escada que dá acesso à torre, aos poucos, lento, resoluto. O que passa na sua cabeça, senão problemas, fraqueza de espírito, resolução desenfreada, malquerença, idiossincrasia? Só ele sabe, e sobe, disposto a dar seu grito de liberdade ou de chamada de atenção, sem medo, sem nada amais. E chama a atenção sim, em pleno pulmão da cidade de Juazeiro do Norte, numa tarde de outubro, de calor sufocante, de quase fim de ano.
Num instante, se interdita a rua, o clima arrulha-se e ninguém mais quer trabalhar. Todos os olhos se voltam para cima, e quem chega aos atropelos aos poucos fica sabendo, e se compenetram ou se riem, acha-se engraçado. Ruas paralelas tornam-se importantes, moços e moças riem, senhores e senhoras se perguntam, indagam aos que passam, pasmam-se. Máquinas fotográficas, câmaras de televisão, reportagens, sirenes do corpo de bombeiro, polícias, olhos e mais olhos, o homem quer se atirar da torre.
O mar de gente se revolta, se renova, se impregna no asfalto, e os olhos não saem do alto. Pula ou não pula, muitos clamam, muitos querem ver o trágico, outros acham terrível a cena, os carros são desviados, as topics enfurecidas, perda de tempo e de dinheiro por causa de um “maluco”.
O corpo de bombeiro imita o homem, sobe resoluto, firme, mas com outro propósito: tentar mergulhar na mente do pseudo-suicida para aliviar a dor e fazê-lo desistir do intento. Enquanto isso, lá embaixo, na negritude do asfalto e das cabeças das pessoas, o cenário está formado: um homem que ameaça suicidar-se, bombeiros que apelam para a vida, um povo dividido entre “pula, pula e vaias” e outros com corações contritos. O pano de fundo: uma rua que já desfilaram tantas alegrias, tantos sonhos, tantas vidas, casas antigas e renovadas, árvores simbólicas e o pior, um grito de suicídio coletivo, numa enxurrada de vontades revoltantes.
No final das contas, o homem não pulou, para alívio de muitos, e o cenário não se avermelhou do sangue que seria jorrado na história da cidade e nas mentes dos ávidos. Faltou um complemento para se fechar a cena, pontilhada nas primeiras linhas acima: a bicicleta. O homem teve a precaução, antes de subir à torre, de amarrar a bicicleta no pé da mesma, anunciando que não iria pular.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

OUTUBRO


Tanta gente no meu rumo
Mas eu sempre vou só
Nessa terra desse jeito
Já não sei viver
Deixo tudo deixo nada
Só do tempo eu não posso me livrar
E ele corre para ter meu dia de morrer
Mas se eu tiro do lamento um novo canto
Outra vida vai nascer
Vou achar um novo amor
Vou morrer só quando for
E jogar no meu braço no mundo
Fazer meu outubro de homem
Matar com amor essa dor
Vou
Fazer desse chão minha vida
Meu peito é que era deserto
O mundo já era assim
Tanta gente no meu rumo
Já não sei viver só
Foi um dia e é sem jeito
Que eu vou contar
Certa moça me falando alegria
De repente ressurgiu
Minha história está contada
Vou me despedir.
Outubro, Milton Nascimento

Estou sob uma frondosa árvore num lugar neutro, no meio do nada, a espera do ônibus. O lugarejo é Mineirolândia, município da cidade de Pedra Branca/CE. O ônibus que espero não é aquele costumeiro.
Meio dia e meia, sol escaldante de início de Outubro, uma solidão, mil pensamentos. Sentado num banco de praça, o suor a brilhar na testa, os olhos a amiudar-se pela impetuosidade da luz solar. E dali, avisto um comércio e na porta dele uma mulher. Meu coração não bate forte, mas meus lábios se abrem num sorriso que só eles sabem por que. Cinco anos se passaram ou talvez mais, muito mais. Do lugar não saio, não tenho coragem por várias razões: uma delas a minha atual situação e outra o sol não deixa: o calor insuportável. Penso como a vida é engraçada, como o mundo é pequeno, como tudo isso se mostra para o ser humano da forma mais simples, incontestável.
A moça não me vê, e de longe tento enxergar no seu semblante, como num zoom óptico, nas lâminas dos seus olhos o meu, ou o nosso passado. Revê-la não me traz exuberância de sentidos, mas a sensação pequena de que o ser humano não é nada, visto que o tempo é tudo, pois brinca com todos, faz loucura, e ri, ri muito de todos nós.
Certo dia, a espera desse mesmo ônibus, nesse tempo que já expus, ouvi alguém me chamar. Quando a vi, ela sorriu e perguntou-me se eu estava perdido. Certamente estava, de qualquer forma, embora soubesse do lugar.
Matamos a saudade, falamos do nosso passado, dos dias que nos conhecemos, do amor fortuito que fizemos por uma única vez, e em condições atropeladas. Rimos de nós mesmos, do encontro e desencontro, para chegarmos ali, depois de muito tempo, perdidos. Ela tinha me dito que saíra da cidade natal por outras questões, ex-marido e ali tinha encontrado um novo amor. Olhando ao redor, lembrei-me da época, encontrar um novo amor naquele lugar poderia ser um marco triunfante. Mas, encontra-se um novo amor em qualquer lugar, até mesmo num velório (não com o morto, claro), mas quem sabe com o viúvo ou a viúva. Despedimo-nos com a nossa história: a dela que se cruzou com a minha em poucos dias e a minha que se cruzou com a dela na mesma proporção.
Agora ali, vendo-a de longe, recordo tudo isso. Talvez ela estivesse casada com o amor da sua vida, talvez, sem muitas mudanças. E quanto a mim, bom, muita coisa mudou.
Vendo a música de Milton Nascimento acima, OUTUBRO: bela canção, em alguns trechos caem bem para mim, ou talvez caiam bem para ela e, talvez, muito mais para vocês.
O ônibus aponta na curva.

sábado, 13 de setembro de 2008

MALEDICÊNCIA, NECESSIDADE OU NÃO


“Antes de falar – manda o bom senso – tende o cuidado de examinar se aquilo que ides dizer satisfaz a estes três requisitos: ser verdadeiro, agradável e animador; do contrário, deixai-vos ficar calado.”
Na última crônica, falei sobre “sueño com serpientes”, e por incrível que pareça, estava sentindo algo no ar. E agora, nessa semana, observo um título um pouco mais interrogativo e coberto de uma camada de pessimismo que sei onde foi parar. Nessas linhas emparelhadas e nas entrelinhas deverá haver uma dor pungente, entrecortada por um gosto amargo na boca, pensamentos tempestuosos que não conseguem deixar de vir à tona, muitas e muitas vezes.
Devo, é bem verdade, deixar no ar várias perguntas, talvez sem respostas, ou com elas de bate pronto, mas sem deixar cair a sutileza. Quem não é maledicente? Eu, que vos escrevo, que busco entre as palavras saídas para o meu desabafo, a saber se você gosta ou não do que escrevo, do que tento passar como mensagem, quando você ainda está no trabalho, e na folga das horas, entra no blog para saber algo mais? Você que sente no companheiro de trabalho que ele(a) lhe olha com outros olhos, não os de paixão, mas os de inveja, de raiva? Você que tem um(a) companheira(a) que nunca desconfiaria de nada, de que a pessoa nunca lhe trairia, seja de que maneira for? Você que se olha no espelho por mais de uma hora, com a tenaz desconfiança de que o vestido não lhe cai bem, a saia, o short, os óculos, os cílios, o batom ou até mesmo o perfume? Você que enxerga no próximo uma coisinha a mais em que ele deve estar mentindo, se saindo com palavras vazias, evasivas, sem fortaleza, sem vida? Quem não é maledicente quando o que nos aparece deixa rastros de coisas que nos faz desconfiar?
Somos maledicentes por estas e outras tantas razões. Querem ver, vejamos: somos, primeiramente egoístas e prontos para viver de uma forma individual, e que estamos em família por pura necessidade, e tantas vezes queremos ficar a sós. Às vezes temos medo da solidão por ela ter uma malícia que nos come sorrateiramente, pois ela carrega no todo um invisível dragão; temos a pura necessidade de estarmos em companhia de alguém por uma questão de sobrevivência (muitos não conseguem sobreviver sem uma companhia, por mais que ela lhe diga tantas vezes “não”); a pura maledicência está na mulher por ela desconfiar até no que veste, daí a razão de uma hora na frente do espelho para apenas colocar um vestido e uma pulseira (tudo tem que combinar), e a combinação das mulheres tem que ser em tudo.
Somos reais maliciosos, porque a malícia nos chama, custe o que custar, não importa o dia e nem a hora, mas ela sempre está nos nossos calcanhares.
No dia a dia, desconfiamos de tudo e até da própria desconfiança. Se nos passam um troco a mais ou a menos; se alguém lhe diz obrigado, ou lhe joga um sorriso, ou lhe chama de querido. Está por trás de tudo a malícia dos dias de hoje, porque o ser humano é um bicho de sete cabeças, um lunático, de outro mundo e coberto de indecisões, de malquerença, de desrespeito, de covardia. E esses problemas não estão longe de nós, mas bem perto, muito perto.
Mas, infelizmente, temos que viver com tudo isso, até não sei quando. Temos que matar um leão por dia ou toda uma selva selvagem para chegarmos doutro lado são e salvos, com ou sem maledicência, imaculados ou pecaminosos, anjos ou demônios.
Gostaria, nessa semana, passar um adocicado gosto nas palavras, mas não dá, não estou com jeito para isso, porque minh´alma tenta voltar ao seu sonho de ouro de uma forma ou de outra, pois o meu corpo a sacode hora a hora para alertá-la de que o perigo ainda não passou e o mal pode estar por vir, a galopar nas asas da graúna, preta de maledicência.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

SUEÑO CON SERPIENTES


(...)
Esta al fin me engulle
Y mientras por su esofago paseo
Voy pensando en que vendra
Pero se destruye
Cuando llego a su estomago
Y planteo con un verso
Una verdad
(Milton Nascimento e Mercedes Sosa)

Sonhar com serpentes tem sido tantos ultimamente. Parte de uma música de grandes vozes da América Latina me cai bem nesses últimos dias. Não parto da idéia antiga de um faquir, em engolir espadas, ou de um encantador de serpentes indiano. Faço das letras latinas para, ao som de um baixo que enche a alma, refletir sobre serpentes. Engoli-las, deixando passá-las pelo esôfago e no estômago deixar que elas se aninhem. Evacuá-las seria o natural, mas não. Há uma verdade nisso tudo, uma verdade de chamar a atenção desses sonhos terríveis, mas real. A verdade está nas serpentes, nos dias nebulosos, das conversas de cortar os outros, da mesmice repetitiva, fortemente reverente.
Sonho nº 01: serpentes envolvidas nos pescoços das vítimas, estas que acham que o mundo tem saída, uma vez de tantas catástrofes, de gelos tornando-se água, de animais sendo extintos;
Sonho nº 02: dentro das urnas e fora delas, serpentes das mais variadas, de línguas bifurcadas, terríveis e intrigantes;
Sonho nº 03: serpentes com línguas tiranas, vinda das mulheres, que serpenteiam pelas calçadas, pelos caminhos mais tortuosos e estão dentro de casa.
De todos os sonhos, vale ressaltar versos para amenizar esses temas tão frívolos, audazes, intolerantes. Estamos sempre cercados por pessoas que cortam os outros, que não param de falar dos outros, de incomodar-se com a vida dos outros, mas as catástrofes nem tanto. O pesadelo é bem mais distante, embora quero mostrar que ela de vez por outra acontece, em pequena escala, é verdade.
Aquele segundo nos mostra, não poeticamente, mas em prosa, de que essas serpentes sempre estão vivas, sorrateiras, num indo e vindo em busca de botes, de presas, de sangue.
O terceiro faz parte da gente, de um dia a dia em que quem tem a mulher ao lado, lambe-se nas suas escamas, e nunca a deixa.
Sueño com serpientes, num espanhol cantado a duas vozes enche-me a alma, acompanhado de um baixo fabuloso, penetra nos meus tímpanos, mas me dá uma conotação de desabafo nesses dias difíceis.
Serpentes se tem por todos os lados, até por dentro, e temos que engoli-las, infelizmente, a gosto e a contra gosto, mas um dia, quem sabe, teremos que evacuá-las, até porque poderão incomodar, maltratar, desumanizar.

sábado, 30 de agosto de 2008

UM CORPO ESTENDIDO NO CHÃO


Sábado, manhã de verão. Uma calçada, uma sombra, brisa fresca: um corpo estendido no chão. Parece poesia, mas o corpo estendido no chão está ali a um passo, a um gesto de todos que passam pela rua. Incrível como chama a atenção de todo mundo e todo mundo passa de raspão. Não é da família, mas todos olham, comentam, uns sentem repúdio, outros pena. São dezenas de pessoas que passam e não fazem nada, porque fazer implica em ser co-autor. Co-autor de um cenário, onde o corpo que está ao chão, não se sabe dormindo ou morto. É um corpo qualquer, um bêbado, um desequilibrado, um ente a mais à distância da multidão. Todos olham, quem passa, mas sequer param. Comentam, riem, sérios, passam. Um carro de som passa com propagandas políticas, mas o corpo ainda inerte. Mãos postas sobre o peito, naquele gesto mórbido. Talvez o caixão seja a própria calçada, os passantes a vida, o som os sonhos, os olhos semicerrados: inércia.
Um passa e pergunta: “esse cara aqui, quem é.” Outro responde: “quem sabe?” O primeiro instiga: “que ressaca, que porre.”
Fica por isso mesmo, se vai. Agora passam vendedores ambulantes, meninos aos gritos, e o homem não se dá conta. Mas uma mulher quebra a regra: pára, olha, olha, pensa, coça a cabeça, dura uma eternidade para as convenções normais, parece querer fazer algo, talvez querendo saber quem é, quem sabe um conhecido, a jurar tê-lo visto em algum lugar... Desiste, não o conhece, segue seu caminho, mas ainda olha para trás, coça a cabeça.
Sol castiga, alto, mas não o atinge, ele está sob uma marquise. Parece que na noite anterior, sabia que dormiria ali e o sol não o incomodaria. Bêbado inteligente.... Bêbado? Todos pensam assim, muitos pensam assim, muitos repudiam assim, tantos escarneiam assim. Mulheres passam, fingem não ver, olham de soslaio, e os olhos sem querer buscam outras partes: mais que inertes. Ele, deitado, está sem camisas, os chinelos abandonados em desordem. Agora, se vira, se emborca. Está vivo. A sujeira da calçada traça-lhe um mapa nas costas, nas pernas, nos braços. O solado do pé tem negritude do chão.
O mundo em volta corre, a o vento sopra, as horas passam, e o homem dorme. Os políticos traçam seus planos, as pessoas buscam suas vidas, suas labutas, o seu quotidiano. Mas o homem não, sequer sabe onde está, decerto. Mais que uma preocupação, não imagina nada, não se lembra de nada, não se importa com os olhares e os comentários. Logo estará bom, e certamente se erguerá, as mãos e os pés serão seus sustentos e as paredes também. Deverá pensar em nunca mais beber, pois a ressaca lhe fustiga as entranhas, arranca-lhe os miolos da cabeça em dores... Jamais porá um gole de cachaça na boca.
Isso pensa o autor, mas o corpo que se ergue, que tateia com as mãos as paredes, que anda trôpego, lá na esquina, ao invés de seguir seu curso ao dobrá-la, entra na venda. Certamente sabe que ali não é sua casa, mas outro refúgio. A cachaça e a ressaca são suas adoráveis companheiras.

sábado, 16 de agosto de 2008

CANTAR, CANTAR


Aprimorar a voz, temperar a garganta, amiudar os olhos, soltar o som. Parecem ações comuns, de pessoas comuns, mas não o é. Sentada ao meu lado, então, nessa semana, uma cantora. Tem seus cabelos louros, olhos azuis à La lentes, e na mente um gosto adocicado pela música. No primeiro instante, para mim, uma mulher igual a tantas, para depois saber dos seus ideais. Claro que todos nós temos um ideal, temos algo a perseguir para podermos validar a sombra do sol, mas destaco mais uma pessoa nesta busca incessante pelo futuro. Hoje ela é cantora de uma banda de forró há pelo menos dois meses, mora em Fortaleza, saída do Crato em busca de sucesso e do que mais gosta de fazer: cantar.
Cantar, cantar, não como uma cigarra do conto de La Fontaine, pois a busca do perfeito está no trabalho também, mas como uma idealista na voz rouca.
Volto, então, a imaginar, naquelas tantas pessoas ali que têm seus ideais, num indo e vindo semanal e que ora conseguem, ora desistem, ora riem, ora choram. São tantas, como cigarras e formigas, como lutadoras e desbravadoras.
A cantora da banda de forró, nos seus poucos anos, nos seus gestos naturais, no seu jeito simples, ver-se ali, numa poltrona de ônibus, quem sabe, como um momento de antecâmara, antevendo o futuro, falando do seu amor pelo canto, da sua experiência pouca, mas com muita fortaleza de espírito. Quem sabe, e talvez demore muito, vê-la novamente agora com enorme sucesso como cantora de uma grande banda, distribuindo simpatia e poesia no seu canto.

sábado, 2 de agosto de 2008

QUALQUER CANTO É MENOR DO QUE A VIDA DE QUALQUER PESSOA


Parafraseio uma parte da canção de Belchior “Como nossos pais”, para aludir sobre o meu novo tema. Se há algo a falar nessa semana, falo dos destinos, das vidas das pessoas que vão às viagens. Nessa semana, na volta para casa, sentei-me ao lado de uma jovem. Para mim uma pessoa comum, com todos os seus pareceres, envolvida pelo clima da viagem e o seu cansaço peculiar. Fui obrigado a fazê-la levantar-se porque a minha cadeira era a da janela.
“Vai mexer comigo?” – reclamou.
“Já o fiz” – retruquei, amigavelmente.
Soube, durante o curto tempo da viagem, pois o seu destino estava próximo, de que vinha da visita ao seu pai doente. Muitas vezes fechava os olhos num esforço para deixá-los acordados, tanto quanto para esconder a emoção das lágrimas que invadiam as cavidades oculares. O pai tinha já perdido um pulmão, fumara bastante, como também bebera e agora padecia em dores e sofrimento numa cama de um hospital.
Antes de ela descer, pediu-me que verificasse para ela em Juazeiro do Norte uma estátua de Nossa Senhora de Fátima, pois era devota e a sua anterior, alguém a quebrara na repartição onde trabalhava, acidentalmente.
Quando desceu no seu destino, deixou comigo a frase a que me refiro no título desta crônica. Realmente qualquer “canto” é menor do que a vida de qualquer pessoa. A vida passa rápido, mas os seus detalhes, os seus destinos, os caminhos, as curvas, as esquinas marcam cada um. Se eu olhasse cada passageiro naquele instante tinha-se uma vida para contar num sem-número de quilômetros em viagens repetitivas. Aquela mulher, portanto, tinha a sua individual, mas no momento em que repassou para mim, senti-me na obrigação de refletir e num relance momentâneo fazer-me transportar ao hospital onde estava seu pai, vê-lo, sem nunca tê-lo visto, chorar lágrimas de compaixão, dizer-lhe palavras de conforto e de que tudo sairia bem. Ter-me-ia dito a ela, mas não o fiz. Voei em supostas imagens vendo-o a perder o pulmão, nas incontáveis vezes em que fumou os milhares de cigarros e os goles das bebidas nos bares. Vi-o a criar os filhos através do enorme esforço da profissão de pedreiro, onde erguera tantas casas e delas o pão na mesa para as refeições. Cheguei a vê-lo entrar no hospital com sua dor, a sua falta de ar, o problema que comprometia o coração e as noites mal dormidas, mesmo forçadas pelos remédios impostos.
Qualquer canto, nos maiores que sejam, mesmo aqueles em que se pode medir, mesmo aqueles em que num perdido descampado, num infinito horizonte os olhos não alcancem seu fim, realmente é “menor” do que a vida de qualquer pessoa. Então, na fragilidade de vida, há um contrasenso quanto à dureza dos dias e das horas. Mas, na contramão desses mesmos dias, há a cama, a dor e o sofrimento, mas também há a alegria, o amor, as coisas boas, coisas que se precisa pensar, mostrar, realçar, revitalizar. Por que pensar na morte, mesmo sendo certa, se se deve pensar na vida, nos seus mais gloriosos dias e torná-la cada vez maior do que qualquer canto, qualquer lugar?
Avante, e que os próximos dias sejam leves, muito leves.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

ARRAIÁ FORA DE ÉPOCA?


Nos últimos dias, não há muito que falar nas viagens, de dentro do ônibus para o mundo coisas que são vistas. Não as vi ultimamente, porém tenho que ir um pouco mais longe para enaltecer outros ares.
Passamos do mês de junho, onde tudo é festa nos maiores e menores recônditos do Nordeste. Tudo é motivo de festa, de danças, de folguedos, de comidas típicas, de quentão, de forró, de quadrilha. Por onde você anda, se depara com um casal atracado em abraços em danças ou uma fogueira no caminho. Pra que mais empolgante do que sentir no ar esse cheiro, ou bem dizer, esse som de abraços, de danças, de músicas e de coisa deliciosas.
Mas o que quero ressaltar é o mês de julho que nele todas as festas anteriores terminam. Será? Não, o mês de junho, as festas juninas são “julhinas” – não sei se existe a palavra - continuam ainda, pois são férias para muitos, e no meio desse “furdunço”, lá no sertão central do Ceará, numa quadra coberta de um Liceu, homens e mulheres sorriem e se congratulam por esse período tão majestoso. A Calçados Senador Pompeu, numa atitude de alavancar ímpetos e auto-estimas, a partir de equipes muito bem equilibradas, foge do junho e entra no julho com uma festa de ficar na história. Funcionários se desdobram como uma forma de dizer pra si e para tantos que, mesmo em crises de entressafra na área de calçados, vale a pena sorrir, festejar. Naquele momento, numa euforia desenfreada, por diminuto que fosse o tempo, esqueceu-se da crise e dos entremeios onde o “bicho” enfurecido e munido de enorme facão a decepar cabeças e espantar alegrias tentasse afastar tudo isso dos merecidos trabalhadores.
Quermesse, concurso de rainha e princesa, quadrilha e forró ao som de pé de serra abrilhantaram a festa. Foi descontraído, onde se viam sorrisos dos mais largos nos rostos dos que faziam e contribuíam para tudo acontecer como foi.
Sem sofisma e sem sofreguidão espalho essa notícia como um doce ensejo para enaltecer a todos, sem exceção. Enaltecer um ou outro, não, mas a todos, de ponta a ponta, a partir da idéia principal e a aquela final: o ápice, o cume, o sucesso.
Mas, como todos têm suas tendências, me contradigo: a quadrilha foi o que porventura não poderia deixar de ser. Se houve erros, não os vi; se houve moleza de alguns, nem isso; se houve atraso em tudo, somos brasileiros. O que houve foi uma dedicação que pode ser visto com outros olhos. Parabéns a todos.

Obs.: Ainda ressoam os murmúrios disso tudo em Senador Pompeu. Quem sabe a partir daí se inicie uma etapa diferente na história desse lugar?

sábado, 5 de julho de 2008

ANSIEDADE



Temo pelo que há de vir, o porvir, a morte. Acredito que não só eu, mas todos os mortais. Todos, quase sem exceção, sentem-se assim, indiscriminadamente temerosos pelo que há de vir, absolutamente. Não quero com isso demonstrar nessas palavras semanais – aliás, estive ausente por bom tempo – uma dose, uma pitada de pessimismo. É porque o mundo de hoje e em cada esquina se mostra traquino, inconseqüente por conta das misérias, do medo, da violência golpeante. Mas, não quero paginar esse preâmbulo assim tão verossímil, mas cauteloso, senão.
Estou no ônibus, como sempre digo, semanalmente. Por isso, observações de bordo vem à tona uma nova vez agora com outros olhos. E tento ou enxergo mesmo quase todos os movimentos dos passageiros nessas viagens de dez horas. Entre uma música do mp4 colado nos ouvidos, ou uma leitura de um livro em pleno solavanco – vou de encontro às normas de saúde para minhas retinas – assisto a todos os tipos de ações, vozes e compulsões de tantos. Vejo gente simples, gente besta, gente. Vejo vômitos de mulheres enjoadas derramarem-se em assentos, em corredores, em sacos plásticos, nos pais até. Vejo reclamações de freios estridentes, de bagagens que foram trocadas, de celulares que tilintam em demasia, principalmente quando o veículo está prestes a chegar aos destinos. E é aí que me finco e retrato esta crônica: a ansiedade.
Por que – me pergunto – boa parte dos passageiros não agüentam de ansiedade ao ver que sua parada está bem ali? Não agüentam em permanecer sentadas enquanto o veículo pára? Antes mesmo que o último freio seja acionado, já tantos estão quase no colo do motorista, querem chegar primeiro do que o ônibus. Na rodoviária, principalmente, os corredores ficam lotados de gente em pé. Ora, todos sabem que ali é o final para eles, e por que não permanecem sentados até o final? Seria o caso de não mais suportarem tanto tempo na climatização do veiculo, ou do enjôo que arrancou quase as tripas durante o percurso da viagem? Mas nem todos enjoam, nem todos se cansam. O que se nota é aquela vontade enorme de estar em terra firme. E fico pensando como seriam essas pessoas num avião. Em pé, seguros por um bastão esperando a aterrissagem.
Ansiedade, tempos modernos, tempos de loucura, de medo do que virá, de terror ante as próximas horas. O que se vê são pessoas ansiosas, apressadas e muitas com o gosto de estar em vantagem sobre as outras. Descer primeiro significa ganhar tempo, ser o primeiro de uma fila inconcebível. Não sabem elas que a morte escolheu a todos, somente a ela lhe cabe o dia, a hora e o local? Mas parecem que muitos querem se antecipar a isso, mas eu não, nem tão cedo espero encontrá-la, mesmo sabendo que o final da linha está ali, na rodoviária. Prefiro ser o último, com certeza e descer tranqüilo, sem pressa.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

LOUCO POR BOLA


Vou sair um pouco das observações de bordo, de dentro do ônibus para me reportar algo que me veio à mente. Conheço um guri, um pirralho, um pré-adolescente, como queiram, com seus lá 13 anos. É interessante observar o seu trajeto de vida em todos os seus detalhes para justificar o título desta crônica. Nasceu num berço comum, ladeado pelos familiares. O primeiro presente que recebeu foi uma bola, ofertado pelo pai, claro. Quem mais poderia ser da família, além de um pai coruja ou puramente peladeiro, futebolístico?
Outro contato com a bola ou as bolas foi nos peitos da mãe, mas logo deixou de lado, abusou, talvez pelo fato de saber que elas não seriam mais as mesmas.
Quando foi tempo de ir para a escola ficava desesperado para chegar a hora do recreio, talvez não para merendar, mas para jogar bola com os colegas. Na sala de aula, nas matérias de matemática e de geografia não via outra coisa na frente a não ser figuras geométricas e gostava imensamente de fazer o círculo, porque lembrava uma bola. Na geografia o globo mundial porque também lá vinha à mente a figura da bola. Voltava para casa com o gosto adocicado de bola na boca e na mente. Jogava os livros de lado, mal digeria a comida, porque sabia que a rua seria o campo dos seus sonhos: traves feitas de tijolos ou de chinelos, uma bola de plástico ou de pano e a loucura nas pernas e na vontade.
Dialogar é com ele mesmo, além de uma gagueira vinda da timidez (herdou do pai), mas de dez palavras que pronuncia, nove é sobre futebol e a outra de uma modalidade esportiva qualquer.
Só uma coisa pode tirá-lo desse fanatismo, seria a comida: mas no cardápio teria que ter: bola de carne, pizza (redonda), bola de cuscuz, bolo de chocolate. Outro fator importante é quanto ao jogo, as partidas de futebol. Torce para dois times, um da cidade e outro do sul do país, mas se tratando de futebol assiste a qualquer partida, até do time adversário. O certo é não perder um só lance, de olho na bola, claro. A certeza é que aquele quadrilátero que se chama campo de futebol lhe atrai infinitamente, desde as traves até aos gandulas que vão em busca das bolas. Queria ser nem que fosse um deles, ou o mais fantástico, as traves, se bem que sentiria o impacto da bola nas raridades. Se houvesse alguma pergunta que alguém, inadvertidamente, fizesse sobre o seu futuro, qual seria a resposta?
Tem só 13 anos, mas todo homem sabe que essa é a idade em que inicia o processo da construção do desejo sexual. Como o brasileiro é louco por futebol, também o é pelo rebolado da mulata, no requebro das ancas, onde ele ver não só a bunda, mas duas bolas.
Ah! Ele tem um irmão, mas é totalmente a antítese, não tem muita intimidade com a bola. Prefere um bom prato e de preferência cheio. Tem gosto por tudo que for comida. Mas gosta de coisa redonda, não como a bola, mas como uma panela, por exemplo. Tem somente uma característica similar, é gordo como uma bola, e o irmão não pode vê-lo por perto, porque vai logo tratando de lhe dar um chute, para não perder a esportiva.

domingo, 23 de março de 2008

SEMENTEMENTE


Saio, nesta semana, do ônibus para observar uma passagem que me veio à mente, embora deva ter lembrado dela ainda no assento do veículo.
Há um ano, época da Semana Santa, tive uma dessas raras oportunidades de ganhar algumas horas em conversas com um caboclo do sertão. Na oportunidade o negro das nuvens não se fazia tanto como agora neste ano de 2008 cá pelas bandas do Cariri. E vi, entre umas palavras e outras, o marejar de lágrimas nos cantos dos olhos do bravio sertanejo, onde se preocupava pelas escassas chuvas e já se vendo pelo espalmar do campo a timidez do verde perdendo sua cor e com isso o legume ameaçado se perder.
Tomei emprestada a situação e fiz esta crônica-poema que na época retratou bem o cenário vivido:


1. Nito Paixão, de paixão pelo chão, chora,
Por não ver no céu, nuvens negras,
Nem ventos que tragam esperanças.
Pelo campo, sementes semeadas
Ao redor, chorosas crianças
E no espaldar das mãos, grandes rugas
E nos olhos lágrimas mais que salgadas
E agora?

2. Sementemente nos olhos de pavor,

Vendo os grãos soterrados desde então.

Paixão que é Nito, em grito de terror

Por não ver grãos transformados em colheita,

Por uma desfeita do destino

Chuva que não vem dar evasão

Aos gostos de uma vida em desatino

E que chora.

3. Colher o milho, debulhar os grãos,
Moer sentimentos, comer de sofreguidão,
Remoer as chuvas, espalhar as rugas,
Transformar o mal em tácitas fugas,
Esperar os ventos e as suas bonanças,
Olhar para a mulher, afagar as crianças,
São as coisas mais simples da paixão de Nito,
Fica dito:


4. Porque de grãos não poder haver colheita;
Pela vida fará de tudo para ser semente,
O que da mente virá a vida feita
Aos montes pelo seu torrão.
Nas mãos outras mãos de guarita,
Porque sabe que colherá sementemente
Uma roça de amor do rico chão
E das delícias que vêm da vida.


Anchieta Mendes
12/04/2007

LUTO FECHADO


Esquecer-se da morte e dos mortos é prestar um péssimo serviço à vida e aos vivos. (Philippe Áries)

Uma mulher entrou no ônibus, de luto fechado, ou pelo menos toda vestida de preto. Não quis me envolver no que representava aqueles trajes, mas não pude deixar de perceber que meus pensamentos alçaram vôos e foram de encontro ao significado do preto. Lembrei-me rapidamente, como bom juazeirense, do preto que se veste em todo Cariri e várias cidades do Nordeste, nos dias 20 de cada mês pela alma do Padre Cícero. Lembrei-me também, segundo conta-se a história, quando da morte do mesmo em que não havia mais tecido da cor do luto e o povo pintava outros com a cor preta, extraída de lama ou de sumos de árvores. Ninguém queria outra cor, como também não se via outras nos quatro cantos de Juazeiro.
Olhando a mulher sentada noutra fila, mergulhada na negritude do vestido, veio-me à lembrança de que nos dias de hoje não se veste luto fechado por memória de ninguém. Seria o tempo, a rapidez do mesmo em desmemoriar nossas memórias dos que passaram por nós? Seriam os dias que nos naufragam e fazem nos esquecermos dos mortos ou seriámos nós mesmos que repudiamos a cor da forma que se veste e se pinta? Sabe-se que a cor preta hoje é moda, ou se deve ir juntar-se à interpretação do poema de Fernando Pessoa num trecho em que fala que só lembramos dos nossos entes mortos somente até o sétimo dia, pois tudo o mais é passageiro.
Nesse místico de verdade e fantasia, o preto não é apenas luto, mas uma cor que encobre sentimentos, amortece calor, transpira inspiração. O preto é belo, quanto que a mulher ali bem ao lado é apenas uma vaga imagem metida nele, até porque ela não era bela, mas o preto sim.
Mas devo voltar à mulher e ao preto do vestido. Devo também verificar que é de pesar alguém ainda se manifestar á sociedade a sua dor por intermédio de uma cor: dor pela perda, imaculada ferida contida na alma, sem sexo, sem nexo, sem razão. Dor de perda, de sentimento dolorido, de futuro incerto, de ausência aos lados, de noites mal dormidas, insônias perfeitas, sonambulismo inapropriado. Tudo que se passa ao largo são os olhos do falecido, são as falas do falecido, são os perfumes que inebriavam. Tudo que se move, que se tange, que se diz, ele fazia da mesma forma, comia da mesma iguaria, ria dos mesmos risos, maldizia da mesma mazela.
Espero um dia encontrar essa mesma mulher e creio eu que se houver uma cor preta nela deve ser apenas a dos cabelos, pois o vestido já deve estar roto, pois traças se embrenharam nos seus fios. Os olhos, as falas, os perfumes, as iguarias, os risos agora serão outros com toda certeza.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

VERDE PAISAGEM


Da janela do ônibus, vejo uma paisagem diferente que me enche os olhos. Eles custam a crer que aquele verde seja tão profundo, ao ponto de tentar empertigar mais ainda para sentir que “dói” como uma coisa boa para se ver. Uma paisagem de encher a alma de algo sublime, sobretudo quando esse cenário se sabe que logo perderá sua cor.
Imagino a alegria estampada no semblante do homem do campo, ao amanhecer, abrir a portão do oitão e estender a vista pela vastidão do verde. Um verde tão forte, incapaz de sair das suas retinas e que lhe aumenta as esperanças de dias melhores. Quão provável seria tentar adivinhar o que se passa na mente desse homem, plantado na soleira da porta, com as mãos na cintura, resplandecente sua alma, fácil de notar pelo clima em volta, embora difícil de acompanhar os tantos pensamentos sobre tudo que o envolve.
Viajo vendo um tapete envolvente, igualmente uma satisfação peculiar do homem do campo com suas ferramentas de trabalho, coberto muitas vezes pela densidade do mato, abraçado aos capins, boquiaberto com os animais nos pastos, até acompanhando os trilhares dos cantos dos pássaros. Tudo é festa desmedida ou não, contida ou não, mas com absoluta certeza esperançosa, buscada, mendigada pelos tantos sofrimentos sentidos, rebuscada a cada palmo de chão, a cada nuvem enegrecida, a cada sopro de vento mais fresco, a cada pingo e respigo de chuva. Sim, festa do campo, que de braços longos e fortes abrem-se a um convite aos olhos àqueles que passam ao largo.
Por essa mesma paisagem passei tantas vezes e não me lembro de vê-la tão bela, tão emergente aos todos os sentidos, e muito mais incrível a se perder de vista, acobertada por densas camadas de névoas nas copas das serras.
Vejo animais com esses mesmos sentidos, exclusivamente, onde no farfalhar das asas dos pássaros, no galope dos burros, no trote curto dos jumentos, nos vôos lépidos das aves de rapina, tem um ar de beleza, de imponência natural.
Cercados pelos lados, há açudes, riachos, poças d´água das recentes chuvas e um espelho que confunde céu e a lâmina da água. È de crer a inconfundível soberania dela que corre livre, levando seus peixes, suas algas. Nesse momento lembro-me da poesia, novamente de Fernando Pessoa: “O Tejo é o mais belo rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”.
Os rios estão ali livres, de ninguém, porque, independente do seu batismo, eles são os mesmos, soltos, febris, incólumes em busca dos mares, como se buscassem mais liberdade, mais profundidade, enfim.
Faço essa analogia para enaltecer mais ainda esse chão nordestino, quando se está banhado pelo musgo inconfundível da seiva que sustenta esse homem bravio, de aspecto inabalável, de fortes alternânças para a busca do melhor a cada dia.
Vejo o homem na porta do oitão e o ônibus que passa resfolegando é apenas um ônibus que passa. Para ele, o homem, aquele verde não é apenas um verde qualquer, mas a perfeição do Criador plantada até a última raiz de vida.

domingo, 27 de janeiro de 2008

ALÉM TEJO


Nunca é tarde para se obter o conhecimento. Enquanto vida, esperança. O homem precisa estar sempre em busca da perfeição, dos seus objetivos, mormente condições, e mesmo com elas e sem elas, não importa.
Mais uma vez no ônibus, e agora o tema que vem à tona pego emprestado de um passageiro sentado ao lado com exemplares de literatura de cordel: Lampião e Maria Bonita no paraíso, etc. Fico curioso, mas não me mexo e nem penso em nada. A sua aparência é gente de fora, um estudioso, pois lê os cordéis a rabiscar alguma coisa, anotações. Finjo não me interessar, embora a curiosidade seja um fraco do ser humano, até porque o assunto em questão, que ainda não tinha sido dialogado, me interessava porque é cultura e uma que faz parte do nosso povo: poesia popular, nordestinamente de raiz.
Antes da metade da viagem já sabia que o ao lado era baiano e estava na região do Cariri para um estudo sobre a poesia, a filosofia do direito numa ótica poética popular. O mais interessante e, talvez, comum nos dias de hoje, é que o companheiro de viagem era do interior da Bahia, vivia na roça e só veio a estudar com 14 anos de idade. E aqui faço um a parte para enfatizar esse assunto. Digo que é comum nos dias de hoje uma pessoa vir a estudar já tarde porque ainda há em recôncavos seres humanos que não estudam porque precisa ajudar aos pais, embora as escolas estejam em todos os lugares, nos mais difíceis acessos. O mais empolgante em tudo isso é que, mesmo tarde, o personagem em epígrafe, soube tirar proveito do difícil para superar a si próprio. Formou-se em Direito e hoje leciona numa Faculdade em Minas Gerais. Quantos conseguem esse ápice na vida, embora tantos com escolas nas portas de suas casas e não marcham e nem avançam um quarteirão sequer. È de encher os olhos e esse assunto enviesa por garganta e mente adentro como uma força a nos mostrar que nem tudo está perdido e o conhecimento deve ser sempre rebuscado. Como ele, o personagem, que persegue um assunto simples, a buscar informações para sua tese: como enxertar no ensino de Direito a filosofia a partir da literatura e esta sendo popular. Está, então, a perseguir esse assunto na região do Cariri – celeiro de poetas populares – para defender sua tese em Coimbra, Portugal. Sim, estuda além Tejo, na cidade dos estudiosos, com bolsa do governo português. Conseguiu isso graças a um concurso, onde apenas havia 10 vagas e obteve êxito.
Fiquei, num hiato de diálogo, a imaginar essa vitória e o orgulho que sente por dentro por representar o país tupiniquim nas terras de Fernando Pessoa. Fiquei a imaginar o traçado, o trajeto, a dificuldade para se chagar até ali. Por isso que toda dificuldade tem um troféu a ser erguido, enquanto que as facilidades não têm sabor nenhum. A valorização do espaço, do tempo e dos seus é fundamental para a glória, para a vitória e a meta alcançada.
Ao descer do ônibus estava a levar comigo uma vitória também quando nos deparamos com exemplos tão ímpares.