quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O PASSADO NUNCA MAIS


“No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais

Como Poe, poeta louco americano,
Eu pergunto ao passarinho: "Blackbird, o que se faz?"
Raven never raven never raven
Blackbird me responde:
Tudo já ficou atrás
Raven never raven never raven
Assum-preto me responde
O passado nunca mais.”
Velha Roupa Colorida, Belchior

2008, Natal, final de ano e uma recordação. De tantas idas para o centro da cidade, muitas vezes evito passar pela Rua São José, entre as da Carlos Gomes e a Padre Pedro Ribeiro. Nesse trecho está, ainda, a casa 1040, com a sua segunda fachada. Foi lá onde nasci, juntamente com meus onze irmãos, mas somente quatro vivos. E, então, não podendo evitar, passei por lá esses dias e a porta estava aberta, como à minha espera, à minha passagem. Parei o carro quase que automaticamente e me veio a idéia de tirar umas fotos, sabe-se lá se os novos donos não resolvam por abaixo o que ainda resta de lembranças? Nostalgicamente perfilei-me frente a ela e aos borbotões vieram as lembranças mais que longínquas e fincadas na minha mente. Primeiro a de meu avô, pai de meu pai, numa lembrança apagada, sofrível, vendo-o doente, mas sem a presença do rosto e nunca cheguei a vê-lo, pois sequer havia uma foto dele. Depois, as dos vós maternos, que alias viviam num casarão próximo, o de nº 1085. Lembrei-me bem das janelas e portas enormes, uma calçada assoberbada e única do lugar. O pai de minha mãe lhe deu a da 1040 como presente de casamento. Mestre Duda, senhor dos sapateiros, grande mestre das alpargatas, chinelos de couro, tamancos. Se naquela época media-se o homem pela posse de casas e terrenos, ele era um dos mais opulentos. Quarteirões e mais quarteirões. Os seus produtos eram feitos com qualidade, com maestria, por isso a alcunha de Mestre Duda. Naquela época tudo o que se fazia era por amor à profissão. Analfabeto, lembrei-me que lhe ensinei as primeiras letras do alfabeto, ia deixar-lhe o chá no “capim”, lugar aonde ele ia todas as manhãs ver suas terras, um local reservado a uma lavanderia, com um enorme cacimbão, em que as mulheres iam lavar roupas. Não me lembro se ele aprendeu, porque logo o mal de Alzheimer paginou-lhe em branco as suas memórias. Já era tarde.
Voltando à casa inicial, vejo meu pai e minha mãe. Vejo Joaquim e Dezinha passando-nos lições de vida, orando fervorosamente por nós e conosco. Tudo que envolvia os dois era equilibrado pela fé nos santos e no Deus misericordioso. Vi um tempo de sacrifícios, da água que ainda não era encanada, da fachada da casa que era de taipa, das orações de joelhos de toda as noites, da espera agoniada pelas sextas-feiras ao pé do rádio à válvulas, para ouvir “A hora do mistério”, programa da Rádio Progresso. Um programa de contos misteriosos, assombrados. A partir dessa época ficou em minha mente o gosto pelos contos, pelas narrativas, pela oralidade popular. Vi uma época de vacas magras, de meu pai saindo da Indústria de Rádio (eletromáquinas), sendo o último de uma indústria falida. Vi-o consertando rádios e televisores, recondicionando motores, sendo ministro da Eucaristia, da Ordem Terceira Franciscana, a morrer de um infarto do miocárdio. Junto com ele e inseparável, minha mãe, professora de corte e costura, dona de casa de mãos fortes, de uma presença de espírito formidável, embora com um gênio desmedido. Vi-a ensinando cartas de ABC e Catecismo a milhares de crianças durante toda a sua vida. Via-a sentada na porta da cozinha cozendo, lendo orações, tricoteando, nos ensinando pontos de tricô, a cantar benditos, a afagar os gatos no colo, a dar ordens, a nos ver da cabeça aos pés, a nos vestir depois do banho e deixar-nos na calçada para ver o mundo; vi nossa mãe a clamar para nosso pai a nos bater por uma peraltice qualquer. Ouvia-a falar frases que só a ela era peculiar, ditados vários que um dia irei apregoá-los em meus escritos: “só que ser os tamancos de Roque”, “um calor dos seiscentos cravinotes”, “tai, mané, teu tio?”, “não tem nem no cu o que o canário coma”, “enxerido sem lenço”, e vários outros. Vi-a, aos poucos os seus cabelos embranquecendo, suas rugas aumentando e a memória se perdendo nos labirintos do cérebro. Hoje vive em Aurora, sem memória, sem porvir.
Olhando rapidamente para a rua, agora estendida e ladeadas de casas bonitas e atualizadas, enxerguei o lugar da casa de “D. Maria do Caréu”, uma mulher que tão bem sabia costurar, e que tinha no gogó um enorme caroço, que muitas vezes quando ela falava com sua voz rouca, me dava sustos. Não sabia que a mesma tinha uma doença já avançada: a da tireóide. Indo mais devagar, vejo a esquina, onde no bar dois homens se encontravam diariamente para bebidas e prazeres: Marcondes e Tico Bacorim. Bebiam pelo prazer, e sempre estavam arrodeados de meninos e gente simples. Pagavam bombons, guloseimas. Um dia, um homem comeu duas barras de doce de goiaba em poucos segundos, e isso fez com que os dois, divertindo-se com as bebidas viram ali uma forma de deliciar-se com as cervejas, tanto quanto pelo teatro: pagavam para rir e divertir-se. Inventaram corridas, competições entre os meninos. Rabiscavam com carvão os números de cada atleta, e aquele que chegasse primeiro a dar a volta no quarteirão ganhava uns trocados. Meu irmão Adailton Mendes, ganhava todas as corridas e dava o dinheiro à nossa mãe. Também ele plantava bananeiras, a dar voltas no quarteirão sem pôr os pés no chão. O passado nunca mais.
Tentei, quase que em vão, apesar do resguardo no canto da memória de tudo isso, ver a nós todos, irmãos e família. A casa arqueja, somente com a fachada e os escombros. Um cenário que se avulta aos meus olhos e me transporta para longe. O passado nunca mais voltará, é triste pensar assim, mas a verdade me bate nos sentidos com um sopro incomum. Qual o sentimento, ao ver o lugar, o chão, as paredes (o teto não existe mais), os fantasmas ziguezaguearem pelos escombros, pisarem um solo “sagrado” para nós os Franças e os Mendes. Fantasmas que me suplicam que jamais os esqueçam, apesar dos anos, da lida, de outras vidas alheias e que nos faz naufragar no tempo e no espaço afastados dessas lembranças que lacrimejam os olhos e a alma.