quinta-feira, 2 de junho de 2011

Lei de Murphy à Bordo

Não quero ser indigesto, mas vou repetir a temática com relação às viagens de ônibus semanais. Há dias fiz uma crônica sobre as estatísticas com relação a quem se senta ao meu lado, e as mulheres passaram ao largo. Volto à temática, porque nesta semana a coisa foi demais.


O ônibus parou na segunda rodoviária, e o ônibus praticamente vazio. Estava absorto ao ouvir as notícias no celular, e sequer prestei atenção a quem embarcava na nave a sacolejar. Talvez se estivesse prestado mais atenção certamente impediria, pelo menos com o olhar, do gordo sentar-se ao meu lado. Mas, como o título desta crônica se expressa bem, impossível isso ter acontecido. Mesmo com os seiscentos olhos, as caras mais feias, o zombetear da cabeça em negativa, o homem sentaria por fim. Pronto, aquele volume de carne mal distribuída espalhou-se na cadeira ao lado. Um tormento. Vi-me forçado a recuar para o canto da poltrona, quase a esfregar-me a cara no vidro da janela e forçosamente a espiar cem por cento a paisagem, já vista de muitos anos, pelo menos a viagem toda.

Rechonchudo, largo, com bolsa nos pés, nesse caso obrigado a abrir as pernas e tomar parte do meu lado. Os braços estenderam-se nos anteparos da poltrona, logicamente sem espaço para que eu usufruísse pelo menos de um pouco do braço que separa as poltronas. Impossível. Recolhi os meus braços em cruz no peito, derreei a poltrona e tentei dormir. Tentei, mas não consegui, mas ele sim, e como. O do lado ajeitou a poltrona, ou a cama, estendeu-se como se estivesse em casa, inerte no seu jeitão, e rosnou, roncou, bufou, sei lá o quê mais...inconcebível. Não dormir, não cochilei e apenas rezei. Rezei para que a viagem fosse breve, mas, como breve? A mais longa da minha vida e de todos os tempos. O cara dormia à solto, sonhando com os mais belos pratos, cerveja, gordura beirando os cantos dos lábios, coisas desse tipo.

No sacolejar do carro, as estradas esburacadas, as curvas fechadas, e o homem a dominar todo o território. As pernas abertas, o rosto voltado para o meu lado: pensei: vai me beijar. Faltava pouco, como pouco também faltava ele jogar a perna sobre a minha, se acomodar mais ainda na poltrona e pensar que estava na sua cama mais confortável do mundo. Quem passasse para ir ao banheiro, poderia olhar e imaginar: “Que casal mais lindo.” Um terror!

O pior de tudo isso é que, durante a viagem, tentei olhar ao redor, à frente e consegui enxergar que todas as poltronas estavam vazias, pelo menos seis delas. E por que esse cara veio justamente sentar-se ao meu lado, dominar o espaço, dormir feito um porco, ronronar como um gato, só para que a Lei de Murphy tenha mais sucesso? Pobre de mim.

sábado, 16 de abril de 2011

ALIANÇA PERDIDA


Eu dormia ou tentava dormir na poltrona do ônibus já muito atrasado. Quando de repente, uma senhora ao lado, na outra fileira, despertou-me com o alarido:


- Minha aliança, perdi minha aliança!

As pessoas próximas acudiram à senhora com palavras de “como foi”, “para que lado caiu”. O alvoroço despertou-me de vez, mas não me mexi, sequer olhei para os lados. Tinha sido um dia daqueles. A espera do ônibus me fatigou, e mesmo acostumado com tanto atraso, não me sinto tão acomodado ao ponto de não querer criticar a companhia. Era um desrespeito aos usuários, sabendo-se que só havia aquela empresa para onde praticamente toda gente ia. Monopólio, volta aos séculos de exclusividades, em plenos tempos modernos, impossível.

Deixando o desassossego de lado, a voz rouca da mulher arranhava-me os tímpanos:

- Minha aliança rolou para o lado do homem aqui – e apontava para meu lado, mas não me mexi, tentava não dar ouvidos, pois sabia que encontrar uma aliança no meio de tantas pernas, de tantos bancos era quase impossível. Ademais, ao olhar de viés para a dona do objeto, vendo a situação dela, imaginei-a dentro da casa dos sessenta, e pelo visto o brilho do ouro foi-se com os anos. Então, como encontrar no escuro a peça preciosa da inconsolável mulher?

Uma senhora tentou ajudar, quase a rolar pelo chão com ajuda do filho. Procura daqui, procura dali, tentam, desistem por algumas razões: o escuro do ambiente e os solavancos do ônibus.

- Ela caiu sim pra essas bandas – indicava a mulher, sem sequer se mexer. Talvez com receio de perder o ponto onde viu a aliança sumir, talvez sem querer, pois via gente ao seu socorro, em revezamentos de uns e outros.

- Ela já deve estar perto do motorista – disse um senhor nos fundos do veículo.

Alguns riram, inclusive a mulher.

- Por favor, procurem, não posso perder a aliança.

Alguém poderia imaginar a falta que a aliança poderia causar à mulher, além do transtorno. Os vizinhos do banco atrás de mim comentaram: “Qual vai ser a desculpa em casa ao sentirem a falta da aliança?”. Confesso que ri, ali, baixinho, tanto pelo comentário maldoso, quanto pela situação: perder uma aliança no fim dos tempos, depois de longos anos de casada, era de achar graça. Mas o que não se esperava foi o comentário após a inclusão do ponto de vista de um engraçado no fundo do ônibus:

- O que irá dizer o marido quando chegar em casa?

No meio da algazarra de sorrisos, a mulher se saiu com uma que ninguém esperava:

- Ele não vai reclamar: está sob sete palmos de terra, há mais de quatro anos. Essa era a dele, a minha eu derreti e vendi o ouro.

Vão-se as alianças e os dedos que não reclamem.

quinta-feira, 24 de março de 2011

JOSÉ... STEPHEN... GAY

Negro. Negro como a graúna. Negro como o buraco negro. A negritude em pessoa. Lembro-me, quando o vi, dos escravos sem os seus senhores. Livres, idiossincráticos, sós e em grupos. O nome, não sei, mas poderia ser um José, mas pelo que notei, gostaria de ser chamado Stephen, com “ph” para ser mais real. O corpo magro, as marcas da indecência, os nós na pele pelo estrago dos dias e das noites, a sujeição pelo que fazia, sentia. Negro ou negra, tanto faz ou tanto fez, mas que mostrava um ser humano aos farrapos, entregue ao desvario do sexo, se é que haveria alguém disposto a amá-lo em todas as formas possíveis e imagináveis.

Quando o vi pela segunda vez na calçada do ponto, ou sem ponto mesmo, parecia enxotado pelos seus companheiros de profissão porque estava podre, sem banho pelo menos por uma semana, a mesma camisa amarela de sempre, o mesmo tétrico chinelo preto, a bermuda até os joelhos. Fez uma pose retorcida, escorado num poste, com o rosto para o sol de rachar, somente para acender um cigarro. Naquele momento não era José, nem Stephen, ninguém, ou alguém muito longe da realidade. O cigarro aceso num lampejo, num desequilíbrio de corpo trouxe-me à ideia de que aquele mundo do negro gay estava além. Sozinho, maltrapilho, sob um sol do meio dia, sem sequer notar a penetração insofismável do escaldante astro rei era um desequilíbrio dos mais variantes. Passou-me, então, pela cabeça a sensação espasmódica de que aquele sujeito não duraria tanto na vida.

Temia vê-lo pela terceira vez, e certamente estaria mais na sarjeta, entregue à negritude da noite, duas noites numa só. Se pudesse, de longe, ver apenas os dentes na brancura já amarelada pela nicotina seria muito. Certamente, como dois mais dois são óbvios, Stephen talvez nem fosse mais Stephen. As corsas, os cachorros, os homens impiedosos trariam o negro na ponta do chicote como muitos anos atrás. Se pela cor da pele, se pelo que escolheu de sexualidade, se pela tristeza dos dias, se pela vida que lhe fechou as portas, esse piedoso ser jazeria insepulto nas calçadas sem dor e nem piedade.

Talvez por tempos, quando eu passasse pelas ruas no meu rumo diário, num futuro qualquer, realmente, já o negro não existiria. O cigarro lhe tragaria a vida em sorvos e alvejantes fumaças a enamorar o ar da noite. Certamente seus colegas de profissão nem sentiriam a sua falta, porque o Negro José, gay por profissão, imundo pelo desvario, sempre com a mesma roupa, de amarelo-ovo, de bermuda encardida, as unhas vermelhas escondendo a sujeira, a cabeleira descuidada, a pobreza escaldante nos gestos, não era ninguém que ameaçasse os seus parcos ganhos noturnos e libidinosos.



OLÁ, CARLOS

 Aqui quem vos fala somos nós, companheiros de trabalho, seus amigos, amigas, filhos, esposa e familiares. Somos todos oriundos de um mundo em que você fez parte, de forma tão passageira, de maneira tão ímpar, tão espetacular que já nos dá saudades.


Veja, estamos sentados num lugar isolados, cada um a pensar a sua maneira, mas todos enfocados na sua vida. É praxe, numa conversa, falarmos do passado, do presente ou do futuro. Então, sobre o passado é fato relembrarmos aquele ano de 2002, em que você se aportou aqui em Senador Pompeu para nunca mais sair. Foi um ano que você, temos certeza, apostou no futuro. Vislumbrou a cidade, talvez tenha achado estranha e quando se deu conta, tornou-se cearense de pele e de sangue. Pele por trazê-la nordestina; sangue por amar essa terra e sua gente. Na estranheza do lugar, aos poucos foi cativando as pessoas com seu sorriso, seus galanteios, seu sotaque carioca. Quando percebemos a sua figura de gerente de fábrica, apenas era uma simbologia para as grandes amizades que conquistou. Quando percebemos mais ainda, vimos um homem com seus defeitos, mas, sobretudo, com sua glória em ser humilde, reverente e solidário com todos nós.

Pois é, Carlos. Se estamos sentados aqui a conversarmos, iremos longe. Mas cada um tem a sua visão, o seu enfoque em lembrar-lhe daquele passado soberbo e inesquecível. Sempre ao passarmos pelas ruas de Senador, pelos bares, pela Pizzaria, pela Praça da Juventude, pela Rua Grande, pela Fábrica, pelas Palmilhas, vislumbrar-lhe-emos como foi especial a sua amizade, a sua vida para todos nós. Temos certeza que todos que estamos a conversarmos contigo tem uma memória sua, um canto reservado na mente e no coração o quanto sua presença foi importante.

Sobre o Presente, sentimos dor, Carlos. Pois é, o que temos que sentir além da dor...? Saudades, muitas saudades. Em tudo que falamos, sobre tudo que respiramos, em relação ao que pensamos, você está presente. Se olhamos um para o outro nesse recanto santo, vemos a ti, sentimos a sua presença. Se lágrimas as temos, se gargantas sangram, se corações palpitam tanto, é a sua presença, nada mais. Não é fácil você partir assim, sem mais nem menos. Pensamos até que foi à Crateús, para um passeio, ou a Fortaleza a negócios, mas, sentimos a realidade palpável de que estamos enganados, mas vamos pensar assim, de que você tomou um ônibus da FretCar, esquecido das malas, dos seus, sentou na ultima poltrona, recostou a cabeça no encosto, lançou um último olhar para a Matriz, para a linha férrea, para o giradouro e fechou os olhos lentamente, cansado de mais um dia, e dormiu.

E o Futuro? Ao acordar, Carlos, lembre-se de nós, porque aqui o futuro está no sangue dos seus filhos, nas obras que deixou, nas amizades infindas, na perpetuação das lembranças em tudo que materializou as suas ações.

Pois é, Negão, dorme, balança nos braços do Senhor e que os sonhos sejam sempre eternos.