domingo, 23 de março de 2008

SEMENTEMENTE


Saio, nesta semana, do ônibus para observar uma passagem que me veio à mente, embora deva ter lembrado dela ainda no assento do veículo.
Há um ano, época da Semana Santa, tive uma dessas raras oportunidades de ganhar algumas horas em conversas com um caboclo do sertão. Na oportunidade o negro das nuvens não se fazia tanto como agora neste ano de 2008 cá pelas bandas do Cariri. E vi, entre umas palavras e outras, o marejar de lágrimas nos cantos dos olhos do bravio sertanejo, onde se preocupava pelas escassas chuvas e já se vendo pelo espalmar do campo a timidez do verde perdendo sua cor e com isso o legume ameaçado se perder.
Tomei emprestada a situação e fiz esta crônica-poema que na época retratou bem o cenário vivido:


1. Nito Paixão, de paixão pelo chão, chora,
Por não ver no céu, nuvens negras,
Nem ventos que tragam esperanças.
Pelo campo, sementes semeadas
Ao redor, chorosas crianças
E no espaldar das mãos, grandes rugas
E nos olhos lágrimas mais que salgadas
E agora?

2. Sementemente nos olhos de pavor,

Vendo os grãos soterrados desde então.

Paixão que é Nito, em grito de terror

Por não ver grãos transformados em colheita,

Por uma desfeita do destino

Chuva que não vem dar evasão

Aos gostos de uma vida em desatino

E que chora.

3. Colher o milho, debulhar os grãos,
Moer sentimentos, comer de sofreguidão,
Remoer as chuvas, espalhar as rugas,
Transformar o mal em tácitas fugas,
Esperar os ventos e as suas bonanças,
Olhar para a mulher, afagar as crianças,
São as coisas mais simples da paixão de Nito,
Fica dito:


4. Porque de grãos não poder haver colheita;
Pela vida fará de tudo para ser semente,
O que da mente virá a vida feita
Aos montes pelo seu torrão.
Nas mãos outras mãos de guarita,
Porque sabe que colherá sementemente
Uma roça de amor do rico chão
E das delícias que vêm da vida.


Anchieta Mendes
12/04/2007

LUTO FECHADO


Esquecer-se da morte e dos mortos é prestar um péssimo serviço à vida e aos vivos. (Philippe Áries)

Uma mulher entrou no ônibus, de luto fechado, ou pelo menos toda vestida de preto. Não quis me envolver no que representava aqueles trajes, mas não pude deixar de perceber que meus pensamentos alçaram vôos e foram de encontro ao significado do preto. Lembrei-me rapidamente, como bom juazeirense, do preto que se veste em todo Cariri e várias cidades do Nordeste, nos dias 20 de cada mês pela alma do Padre Cícero. Lembrei-me também, segundo conta-se a história, quando da morte do mesmo em que não havia mais tecido da cor do luto e o povo pintava outros com a cor preta, extraída de lama ou de sumos de árvores. Ninguém queria outra cor, como também não se via outras nos quatro cantos de Juazeiro.
Olhando a mulher sentada noutra fila, mergulhada na negritude do vestido, veio-me à lembrança de que nos dias de hoje não se veste luto fechado por memória de ninguém. Seria o tempo, a rapidez do mesmo em desmemoriar nossas memórias dos que passaram por nós? Seriam os dias que nos naufragam e fazem nos esquecermos dos mortos ou seriámos nós mesmos que repudiamos a cor da forma que se veste e se pinta? Sabe-se que a cor preta hoje é moda, ou se deve ir juntar-se à interpretação do poema de Fernando Pessoa num trecho em que fala que só lembramos dos nossos entes mortos somente até o sétimo dia, pois tudo o mais é passageiro.
Nesse místico de verdade e fantasia, o preto não é apenas luto, mas uma cor que encobre sentimentos, amortece calor, transpira inspiração. O preto é belo, quanto que a mulher ali bem ao lado é apenas uma vaga imagem metida nele, até porque ela não era bela, mas o preto sim.
Mas devo voltar à mulher e ao preto do vestido. Devo também verificar que é de pesar alguém ainda se manifestar á sociedade a sua dor por intermédio de uma cor: dor pela perda, imaculada ferida contida na alma, sem sexo, sem nexo, sem razão. Dor de perda, de sentimento dolorido, de futuro incerto, de ausência aos lados, de noites mal dormidas, insônias perfeitas, sonambulismo inapropriado. Tudo que se passa ao largo são os olhos do falecido, são as falas do falecido, são os perfumes que inebriavam. Tudo que se move, que se tange, que se diz, ele fazia da mesma forma, comia da mesma iguaria, ria dos mesmos risos, maldizia da mesma mazela.
Espero um dia encontrar essa mesma mulher e creio eu que se houver uma cor preta nela deve ser apenas a dos cabelos, pois o vestido já deve estar roto, pois traças se embrenharam nos seus fios. Os olhos, as falas, os perfumes, as iguarias, os risos agora serão outros com toda certeza.