quinta-feira, 24 de março de 2011

JOSÉ... STEPHEN... GAY

Negro. Negro como a graúna. Negro como o buraco negro. A negritude em pessoa. Lembro-me, quando o vi, dos escravos sem os seus senhores. Livres, idiossincráticos, sós e em grupos. O nome, não sei, mas poderia ser um José, mas pelo que notei, gostaria de ser chamado Stephen, com “ph” para ser mais real. O corpo magro, as marcas da indecência, os nós na pele pelo estrago dos dias e das noites, a sujeição pelo que fazia, sentia. Negro ou negra, tanto faz ou tanto fez, mas que mostrava um ser humano aos farrapos, entregue ao desvario do sexo, se é que haveria alguém disposto a amá-lo em todas as formas possíveis e imagináveis.

Quando o vi pela segunda vez na calçada do ponto, ou sem ponto mesmo, parecia enxotado pelos seus companheiros de profissão porque estava podre, sem banho pelo menos por uma semana, a mesma camisa amarela de sempre, o mesmo tétrico chinelo preto, a bermuda até os joelhos. Fez uma pose retorcida, escorado num poste, com o rosto para o sol de rachar, somente para acender um cigarro. Naquele momento não era José, nem Stephen, ninguém, ou alguém muito longe da realidade. O cigarro aceso num lampejo, num desequilíbrio de corpo trouxe-me à ideia de que aquele mundo do negro gay estava além. Sozinho, maltrapilho, sob um sol do meio dia, sem sequer notar a penetração insofismável do escaldante astro rei era um desequilíbrio dos mais variantes. Passou-me, então, pela cabeça a sensação espasmódica de que aquele sujeito não duraria tanto na vida.

Temia vê-lo pela terceira vez, e certamente estaria mais na sarjeta, entregue à negritude da noite, duas noites numa só. Se pudesse, de longe, ver apenas os dentes na brancura já amarelada pela nicotina seria muito. Certamente, como dois mais dois são óbvios, Stephen talvez nem fosse mais Stephen. As corsas, os cachorros, os homens impiedosos trariam o negro na ponta do chicote como muitos anos atrás. Se pela cor da pele, se pelo que escolheu de sexualidade, se pela tristeza dos dias, se pela vida que lhe fechou as portas, esse piedoso ser jazeria insepulto nas calçadas sem dor e nem piedade.

Talvez por tempos, quando eu passasse pelas ruas no meu rumo diário, num futuro qualquer, realmente, já o negro não existiria. O cigarro lhe tragaria a vida em sorvos e alvejantes fumaças a enamorar o ar da noite. Certamente seus colegas de profissão nem sentiriam a sua falta, porque o Negro José, gay por profissão, imundo pelo desvario, sempre com a mesma roupa, de amarelo-ovo, de bermuda encardida, as unhas vermelhas escondendo a sujeira, a cabeleira descuidada, a pobreza escaldante nos gestos, não era ninguém que ameaçasse os seus parcos ganhos noturnos e libidinosos.



OLÁ, CARLOS

 Aqui quem vos fala somos nós, companheiros de trabalho, seus amigos, amigas, filhos, esposa e familiares. Somos todos oriundos de um mundo em que você fez parte, de forma tão passageira, de maneira tão ímpar, tão espetacular que já nos dá saudades.


Veja, estamos sentados num lugar isolados, cada um a pensar a sua maneira, mas todos enfocados na sua vida. É praxe, numa conversa, falarmos do passado, do presente ou do futuro. Então, sobre o passado é fato relembrarmos aquele ano de 2002, em que você se aportou aqui em Senador Pompeu para nunca mais sair. Foi um ano que você, temos certeza, apostou no futuro. Vislumbrou a cidade, talvez tenha achado estranha e quando se deu conta, tornou-se cearense de pele e de sangue. Pele por trazê-la nordestina; sangue por amar essa terra e sua gente. Na estranheza do lugar, aos poucos foi cativando as pessoas com seu sorriso, seus galanteios, seu sotaque carioca. Quando percebemos a sua figura de gerente de fábrica, apenas era uma simbologia para as grandes amizades que conquistou. Quando percebemos mais ainda, vimos um homem com seus defeitos, mas, sobretudo, com sua glória em ser humilde, reverente e solidário com todos nós.

Pois é, Carlos. Se estamos sentados aqui a conversarmos, iremos longe. Mas cada um tem a sua visão, o seu enfoque em lembrar-lhe daquele passado soberbo e inesquecível. Sempre ao passarmos pelas ruas de Senador, pelos bares, pela Pizzaria, pela Praça da Juventude, pela Rua Grande, pela Fábrica, pelas Palmilhas, vislumbrar-lhe-emos como foi especial a sua amizade, a sua vida para todos nós. Temos certeza que todos que estamos a conversarmos contigo tem uma memória sua, um canto reservado na mente e no coração o quanto sua presença foi importante.

Sobre o Presente, sentimos dor, Carlos. Pois é, o que temos que sentir além da dor...? Saudades, muitas saudades. Em tudo que falamos, sobre tudo que respiramos, em relação ao que pensamos, você está presente. Se olhamos um para o outro nesse recanto santo, vemos a ti, sentimos a sua presença. Se lágrimas as temos, se gargantas sangram, se corações palpitam tanto, é a sua presença, nada mais. Não é fácil você partir assim, sem mais nem menos. Pensamos até que foi à Crateús, para um passeio, ou a Fortaleza a negócios, mas, sentimos a realidade palpável de que estamos enganados, mas vamos pensar assim, de que você tomou um ônibus da FretCar, esquecido das malas, dos seus, sentou na ultima poltrona, recostou a cabeça no encosto, lançou um último olhar para a Matriz, para a linha férrea, para o giradouro e fechou os olhos lentamente, cansado de mais um dia, e dormiu.

E o Futuro? Ao acordar, Carlos, lembre-se de nós, porque aqui o futuro está no sangue dos seus filhos, nas obras que deixou, nas amizades infindas, na perpetuação das lembranças em tudo que materializou as suas ações.

Pois é, Negão, dorme, balança nos braços do Senhor e que os sonhos sejam sempre eternos.