sábado, 6 de outubro de 2007

MEMÓRIAS


Volto agora para o interior do ônibus e chama-me a atenção um casal e uma senhora. O casal está junto num lado e do outro, a senhora. Cabelos brancos, traços de quem viveu muito e ali está meio que tranqüila, olhando de vez em quando para o casal. Possivelmente é mãe da mulher, porque numa lógica vista a pelo menos cinco metros de distância, é uma raridade o homem conduzir sua mãe para uma viagem. A esposa sempre tem o poder, e de imediato veio-me à memória a minha mãe. Vi naquela idosa, na poltrona tão perto e ao mesmo tempo tão distante, a imagem idosa da minha genitora, e quando percebi o olhar dela a fitar a “filha” com os olhos de quem busca refúgio, conduzi-me por uma analogia em que foi preciso naquele instante.
Minha mãe há muito que sofre do mal de Alzheimer, acometida devido a uma hereditariedade, que me lembre começou com o meu avô. Interessante que em todas as pessoas com cabelos brancos que me deparo, logo me vem ela.
Ali, então, a senhora ao lado do casal, vejo que há dois mundos: o da velhinha, calada, mas aparentemente ativa, pensativa, conduzida. Religiosamente trago à tona a epístola de São João, no Capítulo 21, versículo 18, “Quando você era moço se aprontava e ia para onde queria. Mas eu afirmo a você que isto é verdade: quando for velho, você estenderá as mãos, alguém vai amarrá-las e o levará para onde você não vai querer ir.”
O da filha, moça, jovem, com muito pra viver, ao lado do amor, está ali, de vez em quando bipartida pela atenção do marido e da mãe. De um lado a memória por findar e por outro uma que teima em paginar histórias e cuidados.
Com meus sentidos mais aguçados, entro nas mentes das duas e traquino nos seus pensamentos numa dimensão de dois mundos, sendo o primeiro da mãe: “Estou aqui, ao que parece sentada numa cadeira ou poltrona, num balançar que enjoa. Não tenho certeza onde estou realmente, mas vejo passar por mim vultos de coisas verdes e de um azulado céu. Apalpo, agora, minhas pernas cobertas por um vestido de chita, e pensando nisso, nunca gostei de vestir esses tipos de tecido. Nunca fui, lembro-me razoavelmente bem, de me pintar, de colocar coisas decorativas nas minhas feições e nem vestidos coloridos, e hoje me põem esse modelo que odeio. Mas não posso nada dizer, porque eles pensam que estou esclerosada e não tenho mais querer. E para não contrariar nada digo. Sigo vestida neste vestido de gente do sítio. Sítio, sítio, não posso esquecer que sou de lá, mas nunca gostei de morar por aquelas bandas, que nem sei para que lado fica. Mas, para onde estou indo, para onde estão me levando nesse chacoalhar que me enerva e me dá enjôo? Olho agora para aquele casal ao meu lado, e arregalo meus olhos para enxergá-los melhor. Tento lembrar deles, e agora me vem uma dúvida: meu filho ou minha filha?”
Mundo 2: “Mamãe não parece muito bem, a cada dia está pior. Espero que essa viagem traga-lhe melhores ares, que se sinta mais reconfortada. Não entendo porque às vezes ela diz coisa com coisa, fica muda, sorrir sozinha. O que se passa na cabeça dela? Talvez muitas coisas que ela mesma nem saiba. Estou preocupada, a sua idade já está avançada. Às vezes sinto que ela me olha assim como se não visse ninguém, que não sabe a quem está olhando. Para ela vir para essa viagem até que não deu trabalho e está ali, se tocando, passando a mão no banco vizinho, olhando para a paisagem com olhar meio que nostálgico. Será se ela está sentindo falta de papai?”
Depois dessa passagem pelos dois mundos totalmente opostos, onde um pensa em não querer nunca o mal do esquecimento e o outro que imagina a mãe naufragada nele, fecho os olhos o restante da viagem. Não me lembro se sonhei, mas senti-me reconfortado nos braços da minha mãe, mesmo ela não sabendo mais quem sou.