quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

CRIMES ANUNCIADOS

Parte 1

Sempre que um ano inicia-se vem com ele, água e morro abaixo, vidas, sofrimentos, mortes. Nada mais triste do que sequer por os pés num ano novo, onde psicologicamente se tem a ideia de que tudo recomeça com alma nova, com espírito renovado. Até tem pessoas que juram mudar de vida, dar uma guinada nos negócios, recompor a economia, abraçar seus desafetos, voltar com a esposa, dar a volta por cima na desgraça que o ano anterior deixou enlameada até o pescoço. Porém, mal o ano se inicia e antes que janeiro se finda, a vida se torna a mesma e nada de novo. O novo foi apenas o espocar dos fogos, do champanhe aberto às pressas e sem jeito, da cerveja bebida aos sorvos, dos abraços dados a todos que se encontraram pelo caminho. Somente isso. Nada de renovado, nada de diferente. A rua a mesma, a casa a mesma, os amigos os mesmos, os amores... Bom, podem ser outros, mas os desgostos, os desencontros, as brigas, tudo o mesmo. O que mudou? Aquela promessa de final de ano, desde o início das festas de natal, com ou sem Papai Noel, onde se persignou com uma devoção arraigada, fervorosa, inundada de uma esperança buscada e rebuscada, tudo não passou de simples momento. Veio o final do ano, o antes, durante e bem recente pós, ainda se tinha nos gestos, no jeito a mais nova composição do que seria uma vida nova: tudo se foi, com o simples surgimento do sol e do emprego, do(a) companheiro(a) ao lado, das dívidas somadas, do carro velho, da sogra, dos meninos barulhentos, do vizinho chato com músicas bregas de maltratar os ouvidos, do riso da vizinha que a tudo ver e comenta, da novela das oito, do Big Brother que teima em voltar. O que mudou? Nada, simplesmente nada.


Mas, numa pacata cidade interiorana (ver em breve um trabalho nosso intitulado: “Pão e carne: um assassinato anunciado”) para a personagem feminina de 21 anos de idade, bonita moça que poderia ter um futuro promissor, mudou. Mudou macrabamente para pior. Stephen King poderia escrever sobre esse crime, Gabriel Garcia Máquez também em “Crônica de uma morte anunciada”, mas apenas uma nota de poucas linhas, uma crônica perdida no fim do mundo anunciou o ocorrido. Nada sem muita importância por tantos crimes cometidos nessa passagem do ano. Crimes do homem contra o homem, esse ser irracional, crimes do homem contra a natureza, crime em todos os aspectos desumanos.

Cenário: um quarto de motel. Personagens: dois amantes. Arma do crime: Irracionalidade misturada a uma arma branca. Causa: Banalidade. Resultado: uma jovem de 21 anos barbaramente ceifada da vida, onde no ambiente pintou com mãos, braços, cabelos, em trágicas pinceladas, as paredes, camas, lençóis de um sangue hitchcockiano pra lá de macabro. Por quê? Por nada, por causa do sexo, por causa de um amor rarefeito, incompreensível, da insensibilidade humana, do poder do macho contra uma fêmea desprotegida, por causa da idéia primitiva de traição, quando na verdade ninguém dá o direito de ser dono do outro. Final da história, em meio a sangue, objeto pontiagudo e cortante, pão e carne, entregue à família para o velório.

Foto meramente ilustrativa
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

SOLIDÃO


Pelas sete horas da manhã, quando passo numa curva do caminho, vejo sempre uma pessoa, ao longe, numa varanda, sentada numa cadeira de rodas, em plena solidão. Muitas vezes ela olha para o ônibus que passa, outras vezes de costas a olhar para o verde do amplo quintal. Um quintal que é um campo repleto de verde, de ar, de pássaros, de brisa, de animais. Quando deixo para trás aquela cena, vem na minha cabeça aquela solidão, a cadeira de rodas e esqueço-me do tempo para imaginar a personagem e sua vida. Principalmente nesta última vez que a vi de costas, a vagar seu olhar pelo campo. Imaginei o amor perdido (perdido pelo fato da condição de paralítico), ou do acidente que ocorreu, ou da doença que a deixou assim, da amada ou do amado que está lá dentro a fazer o café da manhã ou no campo com o leite recém ordenhado. Imagino se tudo isso seria uma condição para que, no pequeno foco da minha visão, a condição de solidão obrigasse ao meu cérebro a esquecer do verde do campo e mergulhar-me na vida daquela pessoa.


E no decorrer da viagem, no transporte de minha mente, vejo aquela pessoa em pé, ou de calças ou de saia, de sorriso nos lábios a receber o bafejo do vento em seu rosto numa manhã qualquer há muito tempo a espera do ou da amada. Não sabendo ela que um dia estaria numa cadeira de rodas para sempre, a amanhecer e depender de outra pessoa para sobreviver. Perderia parte de sua vida por ter caído do cavalo, por ter adquirido uma doença degenerativa, por ter sido atropelada por um veículo, por um acidente de carro quando voltava do trabalho. E ali, ficaria condicionada aquele veículo, embora presa num ambiente soberbo, majestoso. Mas, seria uma prisão que encheria os olhos? Seria um lugar que traria esperança? Ou seria apenas um lugar qualquer que não ajudava em nada para o seu crescimento pessoal e humano?

Fico a imaginar que muitas pessoas gostariam de estar naquele ambiente, a receber a brisa sempre no rosto, a ouvir os cantos dos pássaros tão de perto, a ter um animal à vista sem se amedrontar, mas, a cadeira de rodas tracionaria a quem quer que fosse a estagnar numa vida limitada, embora a esperança fosse de que estava viva e isso era o mais importante, mediante o caso que acontecera para essa condição.

Mas, esquecendo parte desses enlevos, voltando para o cenário que sempre vejo no rápido passar do ônibus, que ali está sempre um humano que sofrera, que sofre, mas acredito que ainda sorri, ainda é feliz e é querido, amado e privilegiado, de qualquer forma.

Imagem: dumc.zip.aet/arch2007.02.25_2007.03-03.htlm