quarta-feira, 4 de agosto de 2010

ESTATÍSTICA DE VIAGEM

Quem disse que há no mundo mais mulheres do que homem; de que há sete mulheres para cada homem?


Discordo imensamente dessa teoria em que pese o que passo semanalmente ou meses ou anos. Não há mais mulheres do que homens, infelizmente. Isso prova essa minha tese pelo tanto que já passei. Alguém sabiamente ou sexualmente ou economicamente desbravou nos quatro mundos, ou nos quatro cantos do Brasil essa ilegítima ideia.

Ah! Queira Deus que isso fosse verdade, que ao meu lado quatro mulheres, não sete, estivessem nos meus cantos, nos meus delírios, nos meus encantos, ou mais precisamente, nas semanas em que viajo no ônibus tragando seiscentos quilômetros de estradas. Que elas estivessem ao meu lado, na minha frente, atrás, em cima, qualquer lugar, no lugar desses insuportáveis homens, a bem da verdade, quer ver, vejamos:

Se viajo semanalmente por seiscentos quilômetros indo e vindo; por dois mil e quatrocentos quilômetros por mês; por vinte oito mil e oitocentos quilômetros por ano. Se viajo dez horas por semana até chegar ao destino; quarenta horas por mês; quatrocentos e oitenta horas por ano, e se o meu cálculo não me engana, nesse tempo todo, trilhando estradas, comendo quilômetros, gastando-se horas, tenho os meus cálculos:

Sozinho nas duas cadeiras no ano por hora: trinta por cento, ou seja, cento e quarenta e quatro horas;

Com uma mulher, independente se criança, se adolescente, se idosa: um por cento, ou seja, quatro horas e oito minutos;

Com homens: o restante, ou seja, 69% (sessenta e nove por cento).

Onde estão as mulheres? Talvez alguém responda que os homens viajam mais, mas isso não me convence, pois de todos os lados nas viagens vejo mulheres. Vejo mulheres com os seus lençóis, com suas crianças, com seus maridos, sós, divagando, ouvindo mp4, lendo, muitas vezes sozinhas. Vejo mulheres indo ao banheiro, vindo no corredor do ônibus em busca de seu acento, e de duas uma: ou fica na metade do caminho, ou passa por mim para sentar atrás, ou no máximo ao lado, porém noutra fileira de cadeiras.

Por outro lado, quando vejo um gordo (sem preconceito), tremo-me todo, até porque sou magro e tenho a plena convicção de que serei espremido e o resto da viagem sentirei falta de ar e de espaço. Quando vejo um bando de policiais que vez por outro vão à reuniões em Fortaleza, sobrará para mim a cadeira ao lado, que saco. Quando vejo um homem com sua mochila nas costas, ou forte e alto, ele certamente vai sentar-se ao meu lado, e em noventa e nove por cento (essa crônica tem muito de números) das vezes tomará o apoio da cadeira do meio como se ele estivesse só, pois não terá consciência de espaço, porque sentará quase em cima de mim. Quantas vezes ronca ao solavanco do ônibus, que pra ele é música aos ouvidos, e virará o rosto pra mim como se estivesse em plena cama conjugal numa liberdade desvairada.

Tudo isso acontece com os homens.

O um por cento que sobrou das mulheres, nas raridades vem sentar-se ao meu lado, senta-se tão devagar, permanece tão em silêncio, divaga tão senhoril, que penso que ali não tem ninguém. E quando o seu braço, distraidamente, toca o meu, tremo-me todo, porque acho que ali ao meu lado há um anjo, um fantasma e que não acredito piamente se ali é uma mulher ou na pior das hipóteses um travesti: sei lá!

sábado, 12 de junho de 2010

NOS CONVIVIOS DO VELHO GRAÇA



"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer." ( Graciliano Ramos )

Neste final de semana tive a grata satisfação de estar num dos convívios do “Velho Graça”, de maneira que me senti feliz demais. Foram momentos raros em que conheci a casa onde Graciliano Ramos viveu com a sua segunda esposa, e na terra onde ele protagonizou um dos mais importantes trabalhos literários de todos os tempos, na Palmeira dos Índios/AL.

Acredito que os conterrâneos de Graciliano Ramos sentem-se honrados, orgulhosos de ter compartilhado o convívio do literato, sentir a presença tão marcante de um dos maiores escritores brasileiros e nordestinos.

Quando entrei no casarão – hoje museu – tive a sensação de ter percorrido anos ao lado do escritor. Cada fotografia, cada palmo de terra, uma cadeira de palhinha, um birô, roupas de dormir quando ele estava doente, livros de primeiras edições, os cigarros que gostava de fumar, as piteiras, conjunto de barbear, canetas e uma máquina de escrever. Mais precisamente a máquina de escrever que me chamou mais a atenção, se bem que o mesmo gostava de escrever no auge da inspiração à mão, para depois repassar a limpo pela máquina. Vi-me sentado no seu birô a escrever as coisas de hoje com aquela máquina, a responsabilidade em datilografar cada letra, sem preguiça, com esforço, até porque hoje temos uma facilidade enorme com o computador. Senti o cansaço em dedar cada tipo num afã de chegar ao resultado final. E sabendo que o escritor escrevia à mão, num esforço em enegrecer o papel em branco de qualquer forma.

Hoje, vejo as facilidades no manejo da sofisticação, porém não se vê tanto brilhantismo na escrita, em vários aspectos.

Voltando à casa de Graciliano Ramos, o aspecto é claro, azulado (portas e janelas pintadas de azul), uma sombra de nostalgia, cultura e sossego. Se ficasse ali por mais tempo, certamente não veria o tempo passar. A noite chegaria mansa, os raios da lua entraria pela única janela aberta e não me surpreenderia. Estaria eu submerso num ambiente totalmente à parte do mundo e de todos. O que viria era somente um homem e seus rascunhos, seus retratos, suas vidas secas, suas angústias, sua infância, são Bernardo estereotipado, caetés mais de perto, e tentaria desvendar em cada palavra, em cada sílaba, em cada frase um mundo atípico, longe, muito longe.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

CRIMES ANUNCIADOS

Parte 1

Sempre que um ano inicia-se vem com ele, água e morro abaixo, vidas, sofrimentos, mortes. Nada mais triste do que sequer por os pés num ano novo, onde psicologicamente se tem a ideia de que tudo recomeça com alma nova, com espírito renovado. Até tem pessoas que juram mudar de vida, dar uma guinada nos negócios, recompor a economia, abraçar seus desafetos, voltar com a esposa, dar a volta por cima na desgraça que o ano anterior deixou enlameada até o pescoço. Porém, mal o ano se inicia e antes que janeiro se finda, a vida se torna a mesma e nada de novo. O novo foi apenas o espocar dos fogos, do champanhe aberto às pressas e sem jeito, da cerveja bebida aos sorvos, dos abraços dados a todos que se encontraram pelo caminho. Somente isso. Nada de renovado, nada de diferente. A rua a mesma, a casa a mesma, os amigos os mesmos, os amores... Bom, podem ser outros, mas os desgostos, os desencontros, as brigas, tudo o mesmo. O que mudou? Aquela promessa de final de ano, desde o início das festas de natal, com ou sem Papai Noel, onde se persignou com uma devoção arraigada, fervorosa, inundada de uma esperança buscada e rebuscada, tudo não passou de simples momento. Veio o final do ano, o antes, durante e bem recente pós, ainda se tinha nos gestos, no jeito a mais nova composição do que seria uma vida nova: tudo se foi, com o simples surgimento do sol e do emprego, do(a) companheiro(a) ao lado, das dívidas somadas, do carro velho, da sogra, dos meninos barulhentos, do vizinho chato com músicas bregas de maltratar os ouvidos, do riso da vizinha que a tudo ver e comenta, da novela das oito, do Big Brother que teima em voltar. O que mudou? Nada, simplesmente nada.


Mas, numa pacata cidade interiorana (ver em breve um trabalho nosso intitulado: “Pão e carne: um assassinato anunciado”) para a personagem feminina de 21 anos de idade, bonita moça que poderia ter um futuro promissor, mudou. Mudou macrabamente para pior. Stephen King poderia escrever sobre esse crime, Gabriel Garcia Máquez também em “Crônica de uma morte anunciada”, mas apenas uma nota de poucas linhas, uma crônica perdida no fim do mundo anunciou o ocorrido. Nada sem muita importância por tantos crimes cometidos nessa passagem do ano. Crimes do homem contra o homem, esse ser irracional, crimes do homem contra a natureza, crime em todos os aspectos desumanos.

Cenário: um quarto de motel. Personagens: dois amantes. Arma do crime: Irracionalidade misturada a uma arma branca. Causa: Banalidade. Resultado: uma jovem de 21 anos barbaramente ceifada da vida, onde no ambiente pintou com mãos, braços, cabelos, em trágicas pinceladas, as paredes, camas, lençóis de um sangue hitchcockiano pra lá de macabro. Por quê? Por nada, por causa do sexo, por causa de um amor rarefeito, incompreensível, da insensibilidade humana, do poder do macho contra uma fêmea desprotegida, por causa da idéia primitiva de traição, quando na verdade ninguém dá o direito de ser dono do outro. Final da história, em meio a sangue, objeto pontiagudo e cortante, pão e carne, entregue à família para o velório.

Foto meramente ilustrativa
fotos.sapo.pt/marisa26/pic/004x6t5q/s500x500

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

SOLIDÃO


Pelas sete horas da manhã, quando passo numa curva do caminho, vejo sempre uma pessoa, ao longe, numa varanda, sentada numa cadeira de rodas, em plena solidão. Muitas vezes ela olha para o ônibus que passa, outras vezes de costas a olhar para o verde do amplo quintal. Um quintal que é um campo repleto de verde, de ar, de pássaros, de brisa, de animais. Quando deixo para trás aquela cena, vem na minha cabeça aquela solidão, a cadeira de rodas e esqueço-me do tempo para imaginar a personagem e sua vida. Principalmente nesta última vez que a vi de costas, a vagar seu olhar pelo campo. Imaginei o amor perdido (perdido pelo fato da condição de paralítico), ou do acidente que ocorreu, ou da doença que a deixou assim, da amada ou do amado que está lá dentro a fazer o café da manhã ou no campo com o leite recém ordenhado. Imagino se tudo isso seria uma condição para que, no pequeno foco da minha visão, a condição de solidão obrigasse ao meu cérebro a esquecer do verde do campo e mergulhar-me na vida daquela pessoa.


E no decorrer da viagem, no transporte de minha mente, vejo aquela pessoa em pé, ou de calças ou de saia, de sorriso nos lábios a receber o bafejo do vento em seu rosto numa manhã qualquer há muito tempo a espera do ou da amada. Não sabendo ela que um dia estaria numa cadeira de rodas para sempre, a amanhecer e depender de outra pessoa para sobreviver. Perderia parte de sua vida por ter caído do cavalo, por ter adquirido uma doença degenerativa, por ter sido atropelada por um veículo, por um acidente de carro quando voltava do trabalho. E ali, ficaria condicionada aquele veículo, embora presa num ambiente soberbo, majestoso. Mas, seria uma prisão que encheria os olhos? Seria um lugar que traria esperança? Ou seria apenas um lugar qualquer que não ajudava em nada para o seu crescimento pessoal e humano?

Fico a imaginar que muitas pessoas gostariam de estar naquele ambiente, a receber a brisa sempre no rosto, a ouvir os cantos dos pássaros tão de perto, a ter um animal à vista sem se amedrontar, mas, a cadeira de rodas tracionaria a quem quer que fosse a estagnar numa vida limitada, embora a esperança fosse de que estava viva e isso era o mais importante, mediante o caso que acontecera para essa condição.

Mas, esquecendo parte desses enlevos, voltando para o cenário que sempre vejo no rápido passar do ônibus, que ali está sempre um humano que sofrera, que sofre, mas acredito que ainda sorri, ainda é feliz e é querido, amado e privilegiado, de qualquer forma.

Imagem: dumc.zip.aet/arch2007.02.25_2007.03-03.htlm