quinta-feira, 25 de outubro de 2007

SEU MUNDINHO


Km 20 ou Senhor do Bonfim, distrito de Senador Pompeu, é uma localidade simples, cortada pela estrada do algodão que liga as regiões do Cariri, Centro-Sul e Sertão Central à capital Fortaleza. É neste dito lugar que eu desço nas minhas viagens e de onde espero o ônibus de volta. Já fiz amizades com boa gente e numa dessas idas e vindas, apresentaram-me um personagem de encher os olhos e de nunca esquecer, principalmente para nós que fotografamos o momento pelas lentes dos olhos e de guardar na memória passagens diversas. À primeira vista achei-o estranho pela sua formação, pelo seu biótipo: no rosto estampavam-se as cavidades laterais das faces de uma magreza, que para ele (depois percebi) era de uma fortaleza sem medida. Logicamente o panorama do corpo em todas suas linhas comungava com o que se via nas faces do seu Mundinho. Apresentou-se assim alvissareiro, alegre, saltitante. É verdade. Nunca o tinha visto pelo tempo que permaneço nesse lugar semanalmente. Um personagem daquele que a gente ver no meio da feira, como se vendesse pomada para mordida de cobra, embolador ritmado sem parar de falar:
“Senhor você não me conhece, mas o que vou lhe dizer está aqui e ali bem perto de você. Para se curar de vez contra tiros e olho grande, tome três goles d´água e se benza, isso bem cedo ao se levantar. Assim, sem mais nem menos. Para você ter idéia, tenho cinqüenta e seis anos e mais pareço um menino. Esse corpo que você ver já saltou de andares e no chão pisei com leveza e maestria. Andei com todo tipo de gente, valentões desse Ceará, capangas de coronéis, assassinos dos mais brutos. Tomei cerveja com eles, fumei cigarros atrás do outro e cá estou para contar história. Tenho o corpo fechado por uma fé que carrego passada pela minha avó: três goles d´água e um pai nosso. Nada mais do que isso. Corpo fechado para bala e olho grande, repito. E não sou dos antigos, pois me considero jovem: danço não somente danças de forró antigo, nem xaxado, nem valsa, nem xote ou maracatu. Danço também essas danças de hoje como ninguém: na boquinha da garrafa, a bundinha (nisso fazia o jeito da dança numa leveza ao mesmo tempo cômica).
Senhor, não tenho inveja de ninguém porque disso não preciso. Não fui à escola, no banco dela não sentei, mas sei as contas de cor, pra testar é só falar. Sei de frente e de trás pra frente, e nem na calçada da escola passei.
Vejo que o senhor, mas antes qual a sua graça? Pois é, também rezo para tirar quebranto, espinhela caída, olho grande e má querença. (Falo então de um joelho meu quebrado por causa de acidente). Não se desespere, vou rezar agora mesmo, e antes que o sol se ponha o senhor não sentirá dor, mas não faz mal lembrar, porque lembrança é coisa que todo homem precisa ter, que tem que tomar três goles d´água e se persignar, porque sem assim falando não dá, não cura, pois veja.
(Estendeu a mão na direção do joelho, cerrou os olhos e com a cabeça perpendicular rezou. Rezou meio contrito, rápido como era o seu jeito de falar).
Pronto, agora sempre tome os goles d´água. Olhe senhor não sou daqui, e sim de Maracanaú, mas dessa região sei de cor como a palma da minha mão. Essa gente toda me conhece e eu conheço ela. E não é sacrifício sempre falar, porque aqui na terra o homem tem seu poder, mas sem aquele lá de cima (tirava o chapéu), não somos nada, pois nEle me seguro e dEle somente temo. Nesse mundo de meu Deus quem não tem no coração o amor, a paz e a caridade de nada tem, mesmo que no cofre e nos bolsos dinheiro não lhe falte. Um dia vai fazer falta nem que seja noutro mundo.
Pois bem, veja senhor o meu corpo que todos pensam que não vale nada. O meu músculo (mostrava o músculo do braço esquerdo) não é um caroço de abacate mas fortaleza, saúde e determinação. Tenho saúde de mil homens e é porque já fiz muita estripulia nessa vida. Bebi demais e também fumei. Tenho essa carteira de cigarros no bolso, mas tem dias que nem me lembro que tenho. Fumo por prazer e não por vício.
E não esqueça você que danço essas danças de hoje: na boquinha da garrafa, a bundinha (e mostrava de novo os tipos de dança, pulando feito um menino, jogando o joelho direito no chão e o esquerdo com o pé apoiado no solo, num pulo como gato).
Não sou um gato e nem tenho sete vidas mas a que tenho dou graças ao lá de cima que me fez viver de novo. Veja senhor esse corte na barriga (levantou a camisa e um rasgo vertical descia de cima a baixo), pois estive quase entregue nos braços da “infeliz”, mas sai dessa e do portão não passei. Tudo dou graças ao lá de cima que sabe que tenho alguma coisa a fazer ainda nesse mundo. E sei bem o que é: levar minha devoção, minhas rezas. Você é de Juazeiro do Padre Cícero? Estive naquele lugar de santo e me espantei com aquela estátua... que coisa enorme, quase nem abarquei o cajado do padre e sequer o chapéu de tão enorme. Também de São Francisco de Assis tenho devoção e acredito piamente nesse seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo...”
O seu Mundinho ainda ia continuar na sua apologia popular, quando o ônibus apontou na curva e quase não deu tempo das despedidas, porém dentro do ônibus rememorei as palavras do personagem para enaltecê-las nessas páginas em branco.

Obs.: imagem ilustrativa: unknownpoets.blogs.sapo.pt