sábado, 18 de abril de 2009

DA FICÇÃO PARA A REALIDADE


Observações de bordo está de volta. Em uma das minhas crônicas, lembro-me bem, falei de que muitos escritores tecem suas obras a partir de uma imagem que viu (jornal, revista, televisão ou da sua realidade diária). Há histórias contadas a gosto, de uma forma lúdica, de uma maneira prazerosa, desde à própria imaginação do autor, até de uma realidade que ele viveu, que ele presenciou ou mesmo que alguém lhe contou.
A minha história de hoje baseia-se em uma realidade que ouvi pelo próprio autor. Era uma manhã meio chuvosa – meio porque chovia, parava, voltava a chover, garoava, molhava o asfalto e as gentes. Fiz parte desse cenário chuvoso, naquela manhã. Vi-me num hospital a espera da consulta. Muita gente, pessoas que se eu atentasse bem, para cada uma nasceria uma crônica inusitada. Não procurei ninguém, nem sequer balbuciei palavras de um bom dia, olá como vai para ninguém. Porém, assentou-se ao meu lado um senhor. Reparei nele o uso do chapéu, de óculos antigos, de aspecto inteiro e de passos firmes. O corpo esguio, porém de estatura mediana, vestes simples e de um olhar vivo, audaz, atento. Sentou-se ao meu lado. Reparou-me, não perguntou meu nome no primeiro balbucio de palavras – talvez pelo fato de que aquele encontro seria único, não interessava o depois – e nem eu, sequer imaginaria que ele poderia estar sendo observado e transcrito para essas páginas dias depois. Para nós, bastava apenas aquele momento.
Seu Raimundo Nonato – ele deu-me o nome para minha lembrança – iniciou a palavrear em tons baixos, soltos, quase ininterruptos, onde aqui e ali, eu esforçava-me a entender, e a conversa prosseguia. Disse-me os seus anos: ”Você acredita? Tenho 94 anos. Ando só, já fui até para o Pará, sim fui, sozinho, passei 8 dias nas estradas.” “Ainda hoje coloco minha rocinha, sou do campo e de lá não saio.” Filhos! “Mais de 30 espalhados por aí. Três casamentos, onde as duas primeiras mulheres morreram, e essa última ainda está comigo. Tem lá seus mais de setenta anos. Não me serve mais... Aliás, ela mesma disse para mim: `Raimundo, não sirvo mais para essas coisas... Pode se virar´. E o senhor, o que faz? “Pois é, faço. Venho aqui pra rua de 8 em 8 dias... “Não gosto de mulheres velhas, só novinhas...”
Rapidamente, como se acendesse uma lâmpada no meu cérebro, e naquela vontade de rir e a olhar para aquela personagem de contos, de novelas, de romances latinos americanos, veio-me Gabriel Garcia Marquez com sua novela Memórias de minhas putas tristes. Não seria mais semelhante, igualmente idêntico. A novela de Gabo retrata as memórias de um senhor nonagenário, quando do seu aniversário quis comemorar com uma menina virgem. Olhei para seu Raimundo e vi nele a imagem do personagem de Gabriel Garcia Marquez. Na novela tudo foi impossível, mas para aquele homem ali, de 94 anos, lúcido, forte, cheio de vida, segundo o mesmo, ainda sentia os prazeres da carne, embora as prostitutas não fossem mais virgens. Senti-me ali pequeno, longe do personagem real e tentei não pensar no meu futuro, nos meus anos que virão, e teimei achar que tinha certeza que eles virão mesmo.
Seu Raimundo ainda continuava a falar, falar, enquanto eu ia viajando no seu passado, na novela de Gabo, nas pelejas do homem ali perto, a falar de Lampião, de comparar bandidos de antigamente com os de agora; os daquele tempo eram mais “honestos”, os de hoje não valem um “vintém”. Entrou na política, rememorou quando tinha 11 anos ficou ao lado da figura mais incrível daquela época, o cangaceiro temível. Com 11 anos também discutia política, sabia bem das coisas, era inteligente. Quando com 80, ganhou o cargo de delegado do lugarejo. Disse ainda que não tinha medo de bandidos, conviveu com muitos, mas, andava armado. Mostrou a peixeira nos quartos.
Ri, mais comigo do que com ele, e quando ele foi chamado para ser atendido, deixou-me intrigado. Lá se ia uma vida longa, de tempos longínquos, de saúde e imponência. Deixou-me cá a pensar que a vida era engraçada, apesar dos pesares, das dores e dos ais.