sábado, 30 de agosto de 2008

UM CORPO ESTENDIDO NO CHÃO


Sábado, manhã de verão. Uma calçada, uma sombra, brisa fresca: um corpo estendido no chão. Parece poesia, mas o corpo estendido no chão está ali a um passo, a um gesto de todos que passam pela rua. Incrível como chama a atenção de todo mundo e todo mundo passa de raspão. Não é da família, mas todos olham, comentam, uns sentem repúdio, outros pena. São dezenas de pessoas que passam e não fazem nada, porque fazer implica em ser co-autor. Co-autor de um cenário, onde o corpo que está ao chão, não se sabe dormindo ou morto. É um corpo qualquer, um bêbado, um desequilibrado, um ente a mais à distância da multidão. Todos olham, quem passa, mas sequer param. Comentam, riem, sérios, passam. Um carro de som passa com propagandas políticas, mas o corpo ainda inerte. Mãos postas sobre o peito, naquele gesto mórbido. Talvez o caixão seja a própria calçada, os passantes a vida, o som os sonhos, os olhos semicerrados: inércia.
Um passa e pergunta: “esse cara aqui, quem é.” Outro responde: “quem sabe?” O primeiro instiga: “que ressaca, que porre.”
Fica por isso mesmo, se vai. Agora passam vendedores ambulantes, meninos aos gritos, e o homem não se dá conta. Mas uma mulher quebra a regra: pára, olha, olha, pensa, coça a cabeça, dura uma eternidade para as convenções normais, parece querer fazer algo, talvez querendo saber quem é, quem sabe um conhecido, a jurar tê-lo visto em algum lugar... Desiste, não o conhece, segue seu caminho, mas ainda olha para trás, coça a cabeça.
Sol castiga, alto, mas não o atinge, ele está sob uma marquise. Parece que na noite anterior, sabia que dormiria ali e o sol não o incomodaria. Bêbado inteligente.... Bêbado? Todos pensam assim, muitos pensam assim, muitos repudiam assim, tantos escarneiam assim. Mulheres passam, fingem não ver, olham de soslaio, e os olhos sem querer buscam outras partes: mais que inertes. Ele, deitado, está sem camisas, os chinelos abandonados em desordem. Agora, se vira, se emborca. Está vivo. A sujeira da calçada traça-lhe um mapa nas costas, nas pernas, nos braços. O solado do pé tem negritude do chão.
O mundo em volta corre, a o vento sopra, as horas passam, e o homem dorme. Os políticos traçam seus planos, as pessoas buscam suas vidas, suas labutas, o seu quotidiano. Mas o homem não, sequer sabe onde está, decerto. Mais que uma preocupação, não imagina nada, não se lembra de nada, não se importa com os olhares e os comentários. Logo estará bom, e certamente se erguerá, as mãos e os pés serão seus sustentos e as paredes também. Deverá pensar em nunca mais beber, pois a ressaca lhe fustiga as entranhas, arranca-lhe os miolos da cabeça em dores... Jamais porá um gole de cachaça na boca.
Isso pensa o autor, mas o corpo que se ergue, que tateia com as mãos as paredes, que anda trôpego, lá na esquina, ao invés de seguir seu curso ao dobrá-la, entra na venda. Certamente sabe que ali não é sua casa, mas outro refúgio. A cachaça e a ressaca são suas adoráveis companheiras.

sábado, 16 de agosto de 2008

CANTAR, CANTAR


Aprimorar a voz, temperar a garganta, amiudar os olhos, soltar o som. Parecem ações comuns, de pessoas comuns, mas não o é. Sentada ao meu lado, então, nessa semana, uma cantora. Tem seus cabelos louros, olhos azuis à La lentes, e na mente um gosto adocicado pela música. No primeiro instante, para mim, uma mulher igual a tantas, para depois saber dos seus ideais. Claro que todos nós temos um ideal, temos algo a perseguir para podermos validar a sombra do sol, mas destaco mais uma pessoa nesta busca incessante pelo futuro. Hoje ela é cantora de uma banda de forró há pelo menos dois meses, mora em Fortaleza, saída do Crato em busca de sucesso e do que mais gosta de fazer: cantar.
Cantar, cantar, não como uma cigarra do conto de La Fontaine, pois a busca do perfeito está no trabalho também, mas como uma idealista na voz rouca.
Volto, então, a imaginar, naquelas tantas pessoas ali que têm seus ideais, num indo e vindo semanal e que ora conseguem, ora desistem, ora riem, ora choram. São tantas, como cigarras e formigas, como lutadoras e desbravadoras.
A cantora da banda de forró, nos seus poucos anos, nos seus gestos naturais, no seu jeito simples, ver-se ali, numa poltrona de ônibus, quem sabe, como um momento de antecâmara, antevendo o futuro, falando do seu amor pelo canto, da sua experiência pouca, mas com muita fortaleza de espírito. Quem sabe, e talvez demore muito, vê-la novamente agora com enorme sucesso como cantora de uma grande banda, distribuindo simpatia e poesia no seu canto.

sábado, 2 de agosto de 2008

QUALQUER CANTO É MENOR DO QUE A VIDA DE QUALQUER PESSOA


Parafraseio uma parte da canção de Belchior “Como nossos pais”, para aludir sobre o meu novo tema. Se há algo a falar nessa semana, falo dos destinos, das vidas das pessoas que vão às viagens. Nessa semana, na volta para casa, sentei-me ao lado de uma jovem. Para mim uma pessoa comum, com todos os seus pareceres, envolvida pelo clima da viagem e o seu cansaço peculiar. Fui obrigado a fazê-la levantar-se porque a minha cadeira era a da janela.
“Vai mexer comigo?” – reclamou.
“Já o fiz” – retruquei, amigavelmente.
Soube, durante o curto tempo da viagem, pois o seu destino estava próximo, de que vinha da visita ao seu pai doente. Muitas vezes fechava os olhos num esforço para deixá-los acordados, tanto quanto para esconder a emoção das lágrimas que invadiam as cavidades oculares. O pai tinha já perdido um pulmão, fumara bastante, como também bebera e agora padecia em dores e sofrimento numa cama de um hospital.
Antes de ela descer, pediu-me que verificasse para ela em Juazeiro do Norte uma estátua de Nossa Senhora de Fátima, pois era devota e a sua anterior, alguém a quebrara na repartição onde trabalhava, acidentalmente.
Quando desceu no seu destino, deixou comigo a frase a que me refiro no título desta crônica. Realmente qualquer “canto” é menor do que a vida de qualquer pessoa. A vida passa rápido, mas os seus detalhes, os seus destinos, os caminhos, as curvas, as esquinas marcam cada um. Se eu olhasse cada passageiro naquele instante tinha-se uma vida para contar num sem-número de quilômetros em viagens repetitivas. Aquela mulher, portanto, tinha a sua individual, mas no momento em que repassou para mim, senti-me na obrigação de refletir e num relance momentâneo fazer-me transportar ao hospital onde estava seu pai, vê-lo, sem nunca tê-lo visto, chorar lágrimas de compaixão, dizer-lhe palavras de conforto e de que tudo sairia bem. Ter-me-ia dito a ela, mas não o fiz. Voei em supostas imagens vendo-o a perder o pulmão, nas incontáveis vezes em que fumou os milhares de cigarros e os goles das bebidas nos bares. Vi-o a criar os filhos através do enorme esforço da profissão de pedreiro, onde erguera tantas casas e delas o pão na mesa para as refeições. Cheguei a vê-lo entrar no hospital com sua dor, a sua falta de ar, o problema que comprometia o coração e as noites mal dormidas, mesmo forçadas pelos remédios impostos.
Qualquer canto, nos maiores que sejam, mesmo aqueles em que se pode medir, mesmo aqueles em que num perdido descampado, num infinito horizonte os olhos não alcancem seu fim, realmente é “menor” do que a vida de qualquer pessoa. Então, na fragilidade de vida, há um contrasenso quanto à dureza dos dias e das horas. Mas, na contramão desses mesmos dias, há a cama, a dor e o sofrimento, mas também há a alegria, o amor, as coisas boas, coisas que se precisa pensar, mostrar, realçar, revitalizar. Por que pensar na morte, mesmo sendo certa, se se deve pensar na vida, nos seus mais gloriosos dias e torná-la cada vez maior do que qualquer canto, qualquer lugar?
Avante, e que os próximos dias sejam leves, muito leves.