quarta-feira, 22 de outubro de 2008

UM HOMEM, UMA TORRE E UMA BICICLETA


Uma torre, um homem desesperado, uma multidão de gente ansiosa para o desfecho final.
O tempo era a tarde, de calor sufocante, a rua mais movimentada da cidade, a torre de telecomunicação, o homem e uma bicicleta. Tudo comum, num tempo comum, onde os carros que passavam apenas deixavam ar quente, asfalto soltando poeira e fragmentos de pneus. Transeuntes que iam e vinham num percurso já há muito conhecido e necessário, numa busca incessante pelo comércio, pela necessidade diária. Os vizinhos são quase que totalmente consultórios médicos, com quase todas as especialidades existentes na área de medicina.
A rua enorme, que corta praticamente toda a cidade. Uma rua que nasceu grande, onde por ela deságuam todos os veículos, todas as pessoas, todos os movimentos, todas as passeatas, todos os políticos, todas as reivindicações, todos os monóxidos de carbono. Por ela se vai, apenas se vai, como estava indo aquele homem do começo da narrativa, com sua fragilidade mental, seus problemas, sua vontade contida e suas preocupações.
Num gesto lento, mas firme, sobe na vida através da escada que dá acesso à torre, aos poucos, lento, resoluto. O que passa na sua cabeça, senão problemas, fraqueza de espírito, resolução desenfreada, malquerença, idiossincrasia? Só ele sabe, e sobe, disposto a dar seu grito de liberdade ou de chamada de atenção, sem medo, sem nada amais. E chama a atenção sim, em pleno pulmão da cidade de Juazeiro do Norte, numa tarde de outubro, de calor sufocante, de quase fim de ano.
Num instante, se interdita a rua, o clima arrulha-se e ninguém mais quer trabalhar. Todos os olhos se voltam para cima, e quem chega aos atropelos aos poucos fica sabendo, e se compenetram ou se riem, acha-se engraçado. Ruas paralelas tornam-se importantes, moços e moças riem, senhores e senhoras se perguntam, indagam aos que passam, pasmam-se. Máquinas fotográficas, câmaras de televisão, reportagens, sirenes do corpo de bombeiro, polícias, olhos e mais olhos, o homem quer se atirar da torre.
O mar de gente se revolta, se renova, se impregna no asfalto, e os olhos não saem do alto. Pula ou não pula, muitos clamam, muitos querem ver o trágico, outros acham terrível a cena, os carros são desviados, as topics enfurecidas, perda de tempo e de dinheiro por causa de um “maluco”.
O corpo de bombeiro imita o homem, sobe resoluto, firme, mas com outro propósito: tentar mergulhar na mente do pseudo-suicida para aliviar a dor e fazê-lo desistir do intento. Enquanto isso, lá embaixo, na negritude do asfalto e das cabeças das pessoas, o cenário está formado: um homem que ameaça suicidar-se, bombeiros que apelam para a vida, um povo dividido entre “pula, pula e vaias” e outros com corações contritos. O pano de fundo: uma rua que já desfilaram tantas alegrias, tantos sonhos, tantas vidas, casas antigas e renovadas, árvores simbólicas e o pior, um grito de suicídio coletivo, numa enxurrada de vontades revoltantes.
No final das contas, o homem não pulou, para alívio de muitos, e o cenário não se avermelhou do sangue que seria jorrado na história da cidade e nas mentes dos ávidos. Faltou um complemento para se fechar a cena, pontilhada nas primeiras linhas acima: a bicicleta. O homem teve a precaução, antes de subir à torre, de amarrar a bicicleta no pé da mesma, anunciando que não iria pular.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

OUTUBRO


Tanta gente no meu rumo
Mas eu sempre vou só
Nessa terra desse jeito
Já não sei viver
Deixo tudo deixo nada
Só do tempo eu não posso me livrar
E ele corre para ter meu dia de morrer
Mas se eu tiro do lamento um novo canto
Outra vida vai nascer
Vou achar um novo amor
Vou morrer só quando for
E jogar no meu braço no mundo
Fazer meu outubro de homem
Matar com amor essa dor
Vou
Fazer desse chão minha vida
Meu peito é que era deserto
O mundo já era assim
Tanta gente no meu rumo
Já não sei viver só
Foi um dia e é sem jeito
Que eu vou contar
Certa moça me falando alegria
De repente ressurgiu
Minha história está contada
Vou me despedir.
Outubro, Milton Nascimento

Estou sob uma frondosa árvore num lugar neutro, no meio do nada, a espera do ônibus. O lugarejo é Mineirolândia, município da cidade de Pedra Branca/CE. O ônibus que espero não é aquele costumeiro.
Meio dia e meia, sol escaldante de início de Outubro, uma solidão, mil pensamentos. Sentado num banco de praça, o suor a brilhar na testa, os olhos a amiudar-se pela impetuosidade da luz solar. E dali, avisto um comércio e na porta dele uma mulher. Meu coração não bate forte, mas meus lábios se abrem num sorriso que só eles sabem por que. Cinco anos se passaram ou talvez mais, muito mais. Do lugar não saio, não tenho coragem por várias razões: uma delas a minha atual situação e outra o sol não deixa: o calor insuportável. Penso como a vida é engraçada, como o mundo é pequeno, como tudo isso se mostra para o ser humano da forma mais simples, incontestável.
A moça não me vê, e de longe tento enxergar no seu semblante, como num zoom óptico, nas lâminas dos seus olhos o meu, ou o nosso passado. Revê-la não me traz exuberância de sentidos, mas a sensação pequena de que o ser humano não é nada, visto que o tempo é tudo, pois brinca com todos, faz loucura, e ri, ri muito de todos nós.
Certo dia, a espera desse mesmo ônibus, nesse tempo que já expus, ouvi alguém me chamar. Quando a vi, ela sorriu e perguntou-me se eu estava perdido. Certamente estava, de qualquer forma, embora soubesse do lugar.
Matamos a saudade, falamos do nosso passado, dos dias que nos conhecemos, do amor fortuito que fizemos por uma única vez, e em condições atropeladas. Rimos de nós mesmos, do encontro e desencontro, para chegarmos ali, depois de muito tempo, perdidos. Ela tinha me dito que saíra da cidade natal por outras questões, ex-marido e ali tinha encontrado um novo amor. Olhando ao redor, lembrei-me da época, encontrar um novo amor naquele lugar poderia ser um marco triunfante. Mas, encontra-se um novo amor em qualquer lugar, até mesmo num velório (não com o morto, claro), mas quem sabe com o viúvo ou a viúva. Despedimo-nos com a nossa história: a dela que se cruzou com a minha em poucos dias e a minha que se cruzou com a dela na mesma proporção.
Agora ali, vendo-a de longe, recordo tudo isso. Talvez ela estivesse casada com o amor da sua vida, talvez, sem muitas mudanças. E quanto a mim, bom, muita coisa mudou.
Vendo a música de Milton Nascimento acima, OUTUBRO: bela canção, em alguns trechos caem bem para mim, ou talvez caiam bem para ela e, talvez, muito mais para vocês.
O ônibus aponta na curva.