sábado, 29 de setembro de 2007

PAISAGEM


Mais um dia, mais uma semana nas viagens em que me envolvo com meu trabalho, com o ônibus e com a paisagem. Paisagem esta já bem conhecida. Mas hoje tenho uma vontade danada de ficar calado, de ficar introspectivo e vislumbrar somente a paisagem, como também da janela tirar fotos. Tenho uma sensibilidade ótica incrível por casas antigas, da mais simples a mais sofisticada. Cada uma que me aparece na beira da estrada ou longínqua, solitária num sopé de serra, à beira de um açude, escondida por frondosas árvores, chamam-me a atenção. Olho e me vêm à mente locais pitorescos, diferentes, simples e que me invadem numa forma de imaginar aquelas pessoas morando ali, sua rotina, seus dias. Muitas vezes vejo gente nas janelas, no sopé da porta, varrendo o terreiro, no oitão. Outras já velhas, sentadas em cadeiras preguiçosas, pitando, esbaforindo ao ar fumaças antigas. Veio-me à mente o poema de Vinícius de Moraes e Chico Buarque: “Gente Humilde”, onde diz:
Tem certos dias/ em que eu penso em minha gente/ e sinto assim/Todo o meu peito se apertar/Porque parece/Que acontece de repente/Feito um desejo de eu viver/Sem me notar/Igual a como/Quando eu passo no subúrbio/Eu muito bem/vindo de trem de algum lugar/e aí me dá/Como uma inveja dessa gente/Que vai em frente/Sem nem ter com quem contar/São casas simples/Com cadeiras na calçada/E na fachada/Escrito em cima que é um lar/Pela varanda/Flores tristes e baldias/Como a alegria/Que não tem onde encostar/E aí me dá uma tristeza/No meu peito/Feito um despeito/De eu não ter como lutar/E eu que não creio/Peço a Deus por minha gente/É gente humilde/Que vontade de chorar.
Como no poema, vejo essas casas humildes, essa gente simples, sentada na varanda, por sob uma latada de palha, esperando a morte, mas antes olhando o mundo da estrada, do movimento, das andorinhas e sentindo o vento nos cabelos.
Bem longe avisto outras casas sumidas e imagino seus habitantes na luta pela sobrevivência. Cá na cidade se tem o ditado de que se precisa matar um leão por dia, e no campo, que bicho se deve lutar para não ser devorado?
Vejo que mesmo assim com humildade e tudo, sorrisos, uma satisfação e “que vão em frente” sempre, comparo ao que disse Euclides da Cunha: “O nordestino acima de tudo é um forte”. Uma fortaleza de fazer inveja, mesmo que nos olhos se marejem lágrimas de dor, ele não desiste nunca.
Voltando ás casas, olho-as todas, e quantas de janelas abertas para o mundo e no avançar do ônibus, ainda enxergo no seu interior, imaginativamente, palpitar de corações. Lembro-me que vi uma criança simples, de pés descalços, uma boneca nos braços, um olhar no mundo à sua frente, e imaginei o futuro dela. Que futuro, para onde iria, os sonhos a realizarem. Vejo agora, também, uma escola no alto. Hora do intervalo, crianças jogando bola,e penso: quantas dessa gente vão dali sair um doutor, um político, um empresário ou mais um nordestino em São Paulo?
Volto os olhos para o interior do veículo e observo que poucas ou nenhuma pessoa têm olhos para essa paisagem. Cansadas?

sábado, 22 de setembro de 2007

MÃE CORUJA


O ônibus toma o asfalto de ida, resfolegando na estrada do algodão com vontade, numa velocidade compatível, e cá dentro estou mais uma vez em busca do meu destino semanal. Ao meu lado, hoje não tem ninguém, ainda, mas à frente vão mãe e filha. Fico calado, meio que sonolento, numa manhã bonita, onde pela janela do veículo se ver uma paisagem bucólica, entre um verde que teima em fincar, malgrado sol escaldante do início de agosto. Entre um olhar na paisagem e um nas pessoas em frente, fico a imaginar quanto essas duas naturezas se assemelham: uma misteriosa pela mata fechada e seus habitantes irracionais, e outra no seu mistério feminino que encanta com suas personalidades irretocáveis.
Detenho-me nas duas e suas conversas insuspeitas. A filha envolta em lençol, devido o frio do ar condicionado, e meio que enjoada. A mãe com ar super preocupada, tenta saber o que é. A filha, sabedora de que a mãe tem aquele estilo exagerado de preocupação, tenta acalmá-la, mas com um gosto de vê-la daquela forma e diz, num tom de meninice – pela aparência ela tem seus 25 anos – que lhe falta o ar. Numa atitude de que o mundo estava para se acabar ou o ônibus por virar, a mãe levanta-se num impulso, diz que vai parar o veículo, que as duas desceriam, que não seguiriam a viagem. Mãos na cabeça, mas antes que ela chegasse à cabine do motorista, a filha chama pela mãe aos sorrisos.
Essas cenas se repetem por dezenas de vezes, e quem já estava enjoando era eu. A mãe naquele estado de misericórdia, apalpando a filha, ajeitando-a nos braços, e me vem à mente, Pietá. Pietá de duas mulheres, uma que chora, outra que rir. Não há piedade nisso, é claro, mas há abuso. Viajo, então, pelo passado de ambas e vejo um cenário de filha com seus dois, três anos. Como seria essa cena? O ônibus certamente não passaria da primeira curva e o mundo estaria em pavorosa. A mãe com a filha nos braços correria pelo corredor feito louca e os passageiros em olhares de espantos, ficariam embasbacados e sem ação.
Volto da minha fértil imaginação e sorrio sozinho. A mãe olha para mim como se adivinhasse meu sorriso e exclamou, não para mim, mas para ela mesma: “o que uma festa não faz, bebeu demais.” A filha estava de ressaca e sentia na cabeça e no corpo os maltratos da noite sem dormir e ali, bem cedo da manhã, jogava na cara da mãe o seu enjôo ainda que no balanço da viagem.
Volto à minha imaginação: noite de festa, de calores, de abraços e de amor. Viagem materna, de suores e de horror. Isso para a mãe porque a filha gozava da situação em ver sua companheira de viagem assim, envolvida por uma preocupação de mãe coruja que não deixa seu filhote sentir uma dor: olhos redondos e sentidos aguçados. Mas para nós que estamos assistindo aquela agonia em família não tem como escapar a um comentário lógico: o que uma mãe não faz por um filho ou filha, até se passar por ridícula e se deixar maltratar.
A “criança” dormiu e eu senti-me aliviado, tranqüilo o restante da viagem.

sábado, 15 de setembro de 2007

UMA ATITUDE DE CORAGEM


Entrei no ônibus para mais uma semana de viagem à Senador Pompeu. Que, aliás, é uma cidadezinha de pelos menos 25 mil habitantes fincada no Sertão Central do Ceará. Ir para lá tem que ser a negócio, e esse negócio eu tenho há mais de quatro anos. Mas o povo de lá é hospitaleiro, com orgulho de ter como filho ilustre um dos mais renomados contistas do Estado, senão do Brasil, Moreira Campos.
Sentei-me na poltrona marcada, e lá estava uma mulher. À primeira vista não reparei muito nela, acostumado estava pelas tantas companhias de inda e vinda nessas viagens semanais. Reparei depois até por força de uma conversa simples, amiúde como praxe de quem senta ao lado de alguém, independente do sexo. A fala veio dela, como se estivesse no script: “graças a Deus estou indo embora de Juazeiro do Norte”. Disse a mulher, e foi aí que voltei o olhar e a vi, sentada ao lado, alta, gorda, jovem com seus lá 21 anos e um olhar meio que penoso pela janela, como se despedisse ou tentasse não arrepender-se do que estava dizendo e fazendo. Fui obrigado, juazeirense que sou desde que nasci, a perguntar-lhe o porquê daquele sentimento de revolta por uma cidade tão acolhedora e boa de morar.
“A história é longa...” – disse-me meio que sorrindo e com um suspiro mais que profundo.
Com um ar de graça para que o clima fosse mais propício, rematei: “temos cinco horas de viagem, pelo menos para mim.”
Ela sorriu, e disse primeiramente que ia a uma cidadezinha praiana, perto de Fortaleza e não tinha pretensão mais de voltar. Considerei, assim, que a conversa entraria por um relato importante para um dia ter que começar essas crônicas e que a resolução da moça era forte a ponto de seus olhares rapidamente marejarem. Não quis forçar-lhe nada, até porque não era nenhum profissional de ouvidos alvissareiros ou um psicólogo suburbano. Entre aquele diálogo entrecortado por uma descida ou subida de alguém, uma parada em rodoviárias, ela comia de bolachas recheadas, e eu amigavelmente, adverti-lhe que a mesma engordava, em tom de brincadeira, uma vez que ela já era gordinha. Num sorriso coloquial e num tom mais jovial, considerou que comer era uma forma de esquecer os problemas ou atenuá-los. Ofereceu-me da guloseima, mas preferi permanecer com a minha advertência.
“Deixei o marido”, disse-me assim arrebatadora. “Ontem mesmo vendi o meu negócio, uma escola de ensino infantil, não agüentava mais.”
Debulhou um rosário de acontecimentos na sua vida, a mostrar-me a razão de estar ali, sentada numa poltrona de um ônibus com o destino, talvez, incerto, mas de uma tomada de atitude corajosa e irreparadora. Há muito que chamava a atenção do marido por não agüentar mais viver com ele, porque nunca gostara do mesmo, porque sua vida tinha sido tolhida da meninice, da juventude, da adolescência para viver submissa a um capricho do sexo, que, aliás, fazia por fazer, sem gosto, sem tesão. Ele não queria ouvir, fazia de ouvido mercador, e o tempo passava, e veio assim, a decisão solitária de amanhecer o dia, na ausência do marido, e fugir. Vendeu a escola sem ele saber, sem a mãe, parente nenhum, apenas as professorinhas e seus colegas. Sentia-se aliviada ali, sem os seus por perto, livre, solta, como se a liberdade apenas existisse na sua vida e um destino que lhe esperava longe de braços abertos.

Resmunguei um “hummmm” demorado e fiquei a pensar na coragem da jovem. Casada aos 14 pela imposição dos pais, sem gostar do esposo, sentia-se sem uma vida rotineira como os dos jovens. Sempre gostou da vida agitada e o marido, mais velho 13 anos, não. O teatro foi sua vida, apesar de ser amadora, mas que gostava de escrever peças, até tinha contos rabiscados e engavetados. Recusara convite para ir à Portugal através de um amigo da companhia de teatro. Agora se sentia bem, apesar das últimas horas vividas, e ia em busca da felicidade. Para trás uma vida que não a queria mais e na frente uma estrada asfaltada e desconhecida. Um casal amigo estava a sua espera.
Num trecho da viagem, o celular tocou, como a lhe dizer que o mundo passado não acabara e lhe fazia companhia naquele aparelho. Amigas compartilhavam sua coragem. Nessas horas nenhuma lágrima brotou dos seus olhos.
Emudeci com relação àquela história e cerrei os olhos e imaginei o futuro daquela jovem: fazendo teatro, escrevendo, com uma nova escola em terras distantes e desconhecidas, e certamente um novo amor. Um novo amor, quem sabe, já não estaria a lhe esperar, maldei.