Km 20 ou Senhor do Bonfim, distrito de Senador Pompeu, é uma localidade simples, cortada pela estrada do algodão que liga as regiões do Cariri, Centro-Sul e Sertão Central à capital Fortaleza. É neste dito lugar que eu desço nas minhas viagens e de onde espero o ônibus de volta. Já fiz amizades com boa gente e numa dessas idas e vindas, apresentaram-me um personagem de encher os olhos e de nunca esquecer, principalmente para nós que fotografamos o momento pelas lentes dos olhos e de guardar na memória passagens diversas. À primeira vista achei-o estranho pela sua formação, pelo seu biótipo: no rosto estampavam-se as cavidades laterais das faces de uma magreza, que para ele (depois percebi) era de uma fortaleza sem medida. Logicamente o panorama do corpo em todas suas linhas comungava com o que se via nas faces do seu Mundinho. Apresentou-se assim alvissareiro, alegre, saltitante. É verdade. Nunca o tinha visto pelo tempo que permaneço nesse lugar semanalmente. Um personagem daquele que a gente ver no meio da feira, como se vendesse pomada para mordida de cobra, embolador ritmado sem parar de falar:
“Senhor você não me conhece, mas o que vou lhe dizer está aqui e ali bem perto de você. Para se curar de vez contra tiros e olho grande, tome três goles d´água e se benza, isso bem cedo ao se levantar. Assim, sem mais nem menos. Para você ter idéia, tenho cinqüenta e seis anos e mais pareço um menino. Esse corpo que você ver já saltou de andares e no chão pisei com leveza e maestria. Andei com todo tipo de gente, valentões desse Ceará, capangas de coronéis, assassinos dos mais brutos. Tomei cerveja com eles, fumei cigarros atrás do outro e cá estou para contar história. Tenho o corpo fechado por uma fé que carrego passada pela minha avó: três goles d´água e um pai nosso. Nada mais do que isso. Corpo fechado para bala e olho grande, repito. E não sou dos antigos, pois me considero jovem: danço não somente danças de forró antigo, nem xaxado, nem valsa, nem xote ou maracatu. Danço também essas danças de hoje como ninguém: na boquinha da garrafa, a bundinha (nisso fazia o jeito da dança numa leveza ao mesmo tempo cômica).
Senhor, não tenho inveja de ninguém porque disso não preciso. Não fui à escola, no banco dela não sentei, mas sei as contas de cor, pra testar é só falar. Sei de frente e de trás pra frente, e nem na calçada da escola passei.
Vejo que o senhor, mas antes qual a sua graça? Pois é, também rezo para tirar quebranto, espinhela caída, olho grande e má querença. (Falo então de um joelho meu quebrado por causa de acidente). Não se desespere, vou rezar agora mesmo, e antes que o sol se ponha o senhor não sentirá dor, mas não faz mal lembrar, porque lembrança é coisa que todo homem precisa ter, que tem que tomar três goles d´água e se persignar, porque sem assim falando não dá, não cura, pois veja.
(Estendeu a mão na direção do joelho, cerrou os olhos e com a cabeça perpendicular rezou. Rezou meio contrito, rápido como era o seu jeito de falar).
Pronto, agora sempre tome os goles d´água. Olhe senhor não sou daqui, e sim de Maracanaú, mas dessa região sei de cor como a palma da minha mão. Essa gente toda me conhece e eu conheço ela. E não é sacrifício sempre falar, porque aqui na terra o homem tem seu poder, mas sem aquele lá de cima (tirava o chapéu), não somos nada, pois nEle me seguro e dEle somente temo. Nesse mundo de meu Deus quem não tem no coração o amor, a paz e a caridade de nada tem, mesmo que no cofre e nos bolsos dinheiro não lhe falte. Um dia vai fazer falta nem que seja noutro mundo.
Pois bem, veja senhor o meu corpo que todos pensam que não vale nada. O meu músculo (mostrava o músculo do braço esquerdo) não é um caroço de abacate mas fortaleza, saúde e determinação. Tenho saúde de mil homens e é porque já fiz muita estripulia nessa vida. Bebi demais e também fumei. Tenho essa carteira de cigarros no bolso, mas tem dias que nem me lembro que tenho. Fumo por prazer e não por vício.
E não esqueça você que danço essas danças de hoje: na boquinha da garrafa, a bundinha (e mostrava de novo os tipos de dança, pulando feito um menino, jogando o joelho direito no chão e o esquerdo com o pé apoiado no solo, num pulo como gato).
Não sou um gato e nem tenho sete vidas mas a que tenho dou graças ao lá de cima que me fez viver de novo. Veja senhor esse corte na barriga (levantou a camisa e um rasgo vertical descia de cima a baixo), pois estive quase entregue nos braços da “infeliz”, mas sai dessa e do portão não passei. Tudo dou graças ao lá de cima que sabe que tenho alguma coisa a fazer ainda nesse mundo. E sei bem o que é: levar minha devoção, minhas rezas. Você é de Juazeiro do Padre Cícero? Estive naquele lugar de santo e me espantei com aquela estátua... que coisa enorme, quase nem abarquei o cajado do padre e sequer o chapéu de tão enorme. Também de São Francisco de Assis tenho devoção e acredito piamente nesse seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo...”
O seu Mundinho ainda ia continuar na sua apologia popular, quando o ônibus apontou na curva e quase não deu tempo das despedidas, porém dentro do ônibus rememorei as palavras do personagem para enaltecê-las nessas páginas em branco.
Obs.: imagem ilustrativa: unknownpoets.blogs.sapo.pt
“Senhor você não me conhece, mas o que vou lhe dizer está aqui e ali bem perto de você. Para se curar de vez contra tiros e olho grande, tome três goles d´água e se benza, isso bem cedo ao se levantar. Assim, sem mais nem menos. Para você ter idéia, tenho cinqüenta e seis anos e mais pareço um menino. Esse corpo que você ver já saltou de andares e no chão pisei com leveza e maestria. Andei com todo tipo de gente, valentões desse Ceará, capangas de coronéis, assassinos dos mais brutos. Tomei cerveja com eles, fumei cigarros atrás do outro e cá estou para contar história. Tenho o corpo fechado por uma fé que carrego passada pela minha avó: três goles d´água e um pai nosso. Nada mais do que isso. Corpo fechado para bala e olho grande, repito. E não sou dos antigos, pois me considero jovem: danço não somente danças de forró antigo, nem xaxado, nem valsa, nem xote ou maracatu. Danço também essas danças de hoje como ninguém: na boquinha da garrafa, a bundinha (nisso fazia o jeito da dança numa leveza ao mesmo tempo cômica).
Senhor, não tenho inveja de ninguém porque disso não preciso. Não fui à escola, no banco dela não sentei, mas sei as contas de cor, pra testar é só falar. Sei de frente e de trás pra frente, e nem na calçada da escola passei.
Vejo que o senhor, mas antes qual a sua graça? Pois é, também rezo para tirar quebranto, espinhela caída, olho grande e má querença. (Falo então de um joelho meu quebrado por causa de acidente). Não se desespere, vou rezar agora mesmo, e antes que o sol se ponha o senhor não sentirá dor, mas não faz mal lembrar, porque lembrança é coisa que todo homem precisa ter, que tem que tomar três goles d´água e se persignar, porque sem assim falando não dá, não cura, pois veja.
(Estendeu a mão na direção do joelho, cerrou os olhos e com a cabeça perpendicular rezou. Rezou meio contrito, rápido como era o seu jeito de falar).
Pronto, agora sempre tome os goles d´água. Olhe senhor não sou daqui, e sim de Maracanaú, mas dessa região sei de cor como a palma da minha mão. Essa gente toda me conhece e eu conheço ela. E não é sacrifício sempre falar, porque aqui na terra o homem tem seu poder, mas sem aquele lá de cima (tirava o chapéu), não somos nada, pois nEle me seguro e dEle somente temo. Nesse mundo de meu Deus quem não tem no coração o amor, a paz e a caridade de nada tem, mesmo que no cofre e nos bolsos dinheiro não lhe falte. Um dia vai fazer falta nem que seja noutro mundo.
Pois bem, veja senhor o meu corpo que todos pensam que não vale nada. O meu músculo (mostrava o músculo do braço esquerdo) não é um caroço de abacate mas fortaleza, saúde e determinação. Tenho saúde de mil homens e é porque já fiz muita estripulia nessa vida. Bebi demais e também fumei. Tenho essa carteira de cigarros no bolso, mas tem dias que nem me lembro que tenho. Fumo por prazer e não por vício.
E não esqueça você que danço essas danças de hoje: na boquinha da garrafa, a bundinha (e mostrava de novo os tipos de dança, pulando feito um menino, jogando o joelho direito no chão e o esquerdo com o pé apoiado no solo, num pulo como gato).
Não sou um gato e nem tenho sete vidas mas a que tenho dou graças ao lá de cima que me fez viver de novo. Veja senhor esse corte na barriga (levantou a camisa e um rasgo vertical descia de cima a baixo), pois estive quase entregue nos braços da “infeliz”, mas sai dessa e do portão não passei. Tudo dou graças ao lá de cima que sabe que tenho alguma coisa a fazer ainda nesse mundo. E sei bem o que é: levar minha devoção, minhas rezas. Você é de Juazeiro do Padre Cícero? Estive naquele lugar de santo e me espantei com aquela estátua... que coisa enorme, quase nem abarquei o cajado do padre e sequer o chapéu de tão enorme. Também de São Francisco de Assis tenho devoção e acredito piamente nesse seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo...”
O seu Mundinho ainda ia continuar na sua apologia popular, quando o ônibus apontou na curva e quase não deu tempo das despedidas, porém dentro do ônibus rememorei as palavras do personagem para enaltecê-las nessas páginas em branco.
Obs.: imagem ilustrativa: unknownpoets.blogs.sapo.pt
2 comentários:
Que lindo esse seu conto, deu ate vontade de conhecer Seu Mundinho..
Fico feliz em ter voce, para contar essas suas descobertas, pois assim nos faz ver quant simplicidade esta ao nosso redor e nem damos conta disso...obrigado amigo.
Seu Mindinho inspira alegria, vitoria, vida, satisfação, comunhão e tudo de bom que possa estar ao nosso redor... me deu até vontade de viajar à procura de Seu Mundinho, o cantor, o curador, o amigo, o dançarino, o artista de dom divino, é assim que qualifico seu Mndinho. Essa passagem sua, é uma das mais vibrantes aqui apresentada. Até sugiro, acessar o e-mail do programa do JÔ SOARES e enviar esse fato, certamente será um dos futuros entrevistados do JÔ, e assim irei conhecê-lo também. Sei que o Nordeste é riquissimo dessas personalides, sei também que a arte começa em sua propria pessoa, porque fazer o que você faz também é fazer arte, cada artista tem seu espaço, parabens por viver essas historias, meu futuro ñ será diferente do seu, pois gosto de escrever, de relatar fatos, de discutir, de comparar, de observar e certamente será uma das minhas opções na velhice, escrever, relatar fatos, e dar um tratamento especial aos mais velhos. Você, como artista nato, ainda jovem já começa a se destacar, o que acho correto, pois ñ se deve deixar p/ manhã o que se pode fazer hoje.
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