quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

AS IMAGENS


Lendo uma resenha literária numa revista cultural sobre o livro “O homem em queda”, do norte americano Don DeLillo, onde o mesmo cria suas obras a partir das imagens que ver, principalmente em fotos editadas por jornais ou internet, pensei cá comigo: mas não é somente ele que faz isso. Mas, o interessante é que as imagens ele as toma emprestadas e cria suas obras, buscando exprimir o terror. São imagens que, mesmo estática, ele as movimenta a partir da sua imaginação. Porém, como o norte americano citado está em alta devido o tema de fundo ser o fatídico dia 11 de setembro ainda em voga, é bom salientar que muitos outros escritores também usam imagens para a sua criação: Gabriel Garcia Márquez e Erico Veríssimo. O primeiro utilizou de um homem parado no cais com ares de quem espera algo, onde no semblante pairava certa angústia. Gabriel, a partir daí escreveu “Ninguém escreve ao Coronel”, uma novela que mexe com o leitor do começo ao fim e que flui facilmente e quando se espera que continue ela acaba e fica no ar aquela vontade de que assim nunca o fosse. Já Erico Veríssimo ver estampada num jornal uma foto de vários caixões na porta de um cemitério e daí anos depois cria sua obra magnífica: “Incidente em Antares”. Um romance que mistura ficção e realidade, além do fantástico. Mortos insepultos, aproveitando a greve geral da cidade, inclusive dos coveiros, saem às ruas espalhando medo, terror e jogando nas caras dos moradores realidades que eles nunca queriam saber.
Muitas vezes, então, as imagens falam demais e outras nos deixam pensativos. Durante todo este ano de 2007 as vi muitas e com outros olhos. Vi pessoas que me inspiraram a vontade de escrever; locais que me chamaram a atenção pela sua simplicidade em recônditos mais sofridos; de gols de craques; de acidentes; de vida palpitando por todos os lados; de sinistros; de crises e lágrimas; de incidentes, de acidentes, de risos, de beijos e desejos, de poesias ao vento como folhas no outono; vi cenas que gelaram a alma, outras que esquentaram o coração; vi os olhos marejados de lágrimas de gente recebendo presentes, do emprego alcançado, do sonho realizado; vi um dois mil e sete da cor do pecado, de impostos caindo, de políticos iguais, de catástrofes e sangue; vi e ouvi músicas que falaram demais, mas que empobreceram demais também; vi pássaros arribando, buscando outros ares; vi moleques sem camisas pulando de pontes, de aves de rapina no vôo clássico, de vacas magras e raposas mortas no asfalto; vi o tempo passar nas brancas nuvens de céus azuis, de horizontes avermelhados como sangue derramando em cascata; vi a barata ser morta pelos pés do homem (antes que ela se metamorfoseasse no próprio homem); vi o bandido ser preso, algemado para trás, inerte, mas logo crente da sua soltura (pobre justiça), do político ao rir da cara do povo e este povo rir da cara dele (vingança sensível); vi tantas coisas, tantas cenas, tantas imagens, que diria que finalmente não vi nada, além de você: você Maria. Maria dos meus sonhos, da minha pele, da imagem que gravei nos meus olhos no primeiro instante que a vi. Espero vê-la no próximo ano e no outro e no outro e sempre. Você Maria bela, linda, feita mulher que me enche de paz e de fortaleza para saber reter nas minhas retinas as imagens dos seus olhos. Vi através deles, como espelho d´água os reflexos de tudo isso, lado a lado, frente a frente, como jamais vi e que me faz transcrever para o papel os escritos que os criei e os criarei.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

CARTAS AO PAPAI NOEL


Nesse tempo de presentes, pela busca de realizações, de trocas de presentes em festas de amigos secretos, eu chamo a atenção de vocês para um fato marcante que acabo de vivenciar. Jamais passei por uma situação como essa, uma vez que tenho alguma experiência em empresas que trabalhei, com pessoas com que vivi em todas as formas, mas em pleno sertão nordestino nunca. Disse que chamo a atenção de vocês porque parece ser simplória essa coisa de escrever ao Papai Noel que não existe, que alguém inventou, talvez, de última hora, por causa de uma criança ou de uma situação que exigisse isso. Penso que esse alguém não tinha o que fazer ou fazia demais. Escrever ao Papai Noel quantos não fazem. Vejam exemplos de todos os anos em que os Correios ampliam a esperança de várias crianças. E isso existe, o bom velhinho existe em suas mais diversas formas e cores e locais.
A Calçados Senador Pompeu, vale a pena registrar aqui, proporcionou aos seus funcionários uma situação idêntica, onde todos poderiam escrever ao Papai Noel, em busca da esperança, de um presente, de uma situação que mudasse suas vidas. No início foi uma surpresa, um “não sei o quê” enfatizado nas feições de muitos. Talvez para tantos fosse uma forma da empresa fugir um pouco da responsabilidade de não estender a todos o presente de fim de ano, aquela festa que muitos esperam, aonde todos vão e muitos não saem satisfeitos, onde se formam grupos e o sentido de integração e confraternização não é atingido.
Então, muitos escreveram ao velhinho do Pólo Norte ou daqui mesmo do Sertão Central, do Cariri, dos Inhamuns.
Agora, importante ressaltar e encher os olhos d´água: muitos escreveram não para si, mas para outros, lembrando do seu próximo, daqueles que precisavam mesmo de um presente, de uma ajuda, como: cadeiras de rodas, andadores, televisão para a mãe, bicicleta para a filha, camas, móveis, óculos de grau, etc. Ou seja, dentro de cada carta existia um pedido ao Papai Noel, mas eles eram os Papais Noéis em duplicidade.
Na entrega dos presentes, quando das leituras de algumas cartas, o que se viu de lágrimas nos olhos de muitos, na comoção de saber que seu amigo ao lado recebeu aquele presente que tanto ansiava, por saber que uma menina precisava de uma bicicleta que sua mãe não podia comprar, que o olho estava a perder o colorido da vida e acabava de ganhar os óculos, da cadeira de rodas da filha com problemas de locomoção. Realmente não dava para segurar a comoção, as lágrimas e o engasgo na garganta foram sentidos.
Quero então, nesse clima de Natal, felicitar a iniciativa da empresa, de todos que fizeram parte desse evento, e divulgar para muitos que esse tipo de iniciativa vale a pena lagrimejar os olhos e sentir o verdadeiro sentido do tempo do Advento, dAquele que vem e que nos encha de esperança e vida nova.
Feliz Natal a todos.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

UM PASSEIO PELO SERTÃO


Quando de um trabalho nos PSF´s no município de Senador Pompeu, tive que visitar vários lugares e, mesmo sendo de uma região também árida, fiquei vislumbrado com tanto brilho para os meus olhos e um gosto a mais para a alma. Pareceram-me comum os lugares, mas no que consegui mergulhar ficou na minha imaginação cada palmo, cada poeira, cada pássaro. Se eu fosse filosofar para me embrenhar nas profundezas do que o sertão traz de belo, ficaria em dois patamares de que me lembro até então: a discrição pela ótica de Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas e de Euclides da Cunha em Os Sertões. Não que eu venha a conduzir-me por eles, mas para ter a certeza de que quem precisa escrever algo que passe pelo menos horas entre matos, caatinga, carcará, rolinha, estradas e veredas. Não esquecendo, claro, do povo simples, audaz, guerreiro e forte.
Passei por caminhos que pareciam levar-me a nada, mas esse nada era tudo aos olhos de quem pertinentemente precisa passar por isso nem que fosse para outro tipo de trabalho. Caminhos poeirentos, de pedras e aos lados de matos secos e cinzentos. Aqui e ali uma casa que se erguia e na frente dela uma paz, uma tranqüilidade de fazer qualquer pessoa sentir-se intruso, alheio e doutro mundo. Casas de todos os tipos, da menor ao casarão. As menores com sua simplicidade, de taipa, de barro e os casarões majestosos. Casas abandonadas entregues ao mato denso, às amarguras do tempo. Veredas que também me deixavam imaginar para onde iam, quem por elas seguiam. E o motorista que nos conduzia a cada lugar peculiar, nos dizia das histórias: “um crime passional, quando um marido enciumado mata a esposa a pedradas”, e se vê um túmulo de chamar a atenção e de espinhar os olhos num contraste à luz do sol. “Uma mulher que se suicidou numa ribeira, por ter sido abandonada praticamente no altar pelo noivo, e que nas noites de lua cheia surge para quem passa pelo caminho, subindo nas motos, nos cavalos e qualquer outro tipo de veículo, pondo medo ao lugar.” São essas histórias que fincam na minha mente.
Outro importante detalhe é a cara do povo, da gente do lugar, onde se percebeu os traços marcados pelo sofrimento, pela luta com a terra e os animais. Gente ainda trazendo no lombo dos animais a água, o leite, a lenha. Gente que na varanda cata piolho dos filhos rechonchudos, aparentemente despreocupada com a vida. Gente que mergulha nas águas dos açudes em finais de tarde, que caça passarinho com estilingue, que ordenha a vaca nos currais. Parece um cenário tantas vezes visto, mas não é só isso que impera e que vislumbra, senão a necessidade de que haja um tempo assim, um momento assim para que uma reflexão surja e de quanto precisamos, pelo menos uma vez na vida, depararmos com cenas tão burlescas e imprescindíveis. Cenas de uma pequena árvore com cinco grandes ninhos, de um carcará alçando vôo em busca de alimento, de graúdas mangas dependuradas em sombrosas mangueiras, de uma mãe de grandes peitos amamentando a cria, um menino com os pés descalços atrás de uma galinha, um bezerro a mungir desmamado.
Lugares com nomes interessantes para quem busca nos seus escritos batizar seus lugares fictícios: São Joaquim, Estreito, Contendas, Jatobá, Riacho do Meio, Lajedos, Rosário, Codiá e tantos outros.
A cada entrada nesses lugares era como se estivesse adentrando num filme antigo, numa novela de época, num romance de Gabriel Garcia Márquez ou de Guimarães Rosa. Lugares que só a eles pertencem por serem suas as casas, as gentes, os animais, o ar, a poeira, o sol e a lua.


domingo, 25 de novembro de 2007

MOTORISTA DO AMOR


A partir dessa e das outras semanas retratarei sobre alguns personagens que conheço por onde ando e trabalho. Alguém pode me perguntar se o que escrevo é verídico ou apenas trata-se de literatura de ficção ou tudo não passa de embelezamento de palavras. Para vocês que me acompanham na leitura semanal não vou muito me deter ao lugar, mas ao personagem sim. Isso equivale dizer que toda e qualquer espécie de gênero literário (conto, poesia, crônica, novela e romance) precisa-se de uma imagem para que quem escreva revigore a sua imaginação.
Em pleno sertão central cearense ou em qualquer outro lugar pode-se encontrar personagem ao qual descreverei, mas ainda não pude averiguar mais de perto outro igual a esse. É muito singular ver em praças, nas calçadas, nos botecos e becos, nas esquinas e pelas estradas gente de todas as espécies, com suas características e seu jeito de ver a vida nos mais diversos ângulos. È comum se ouvir dos jovens de hoje respostas evasivas sobre os seus sonhos e seus anseios em relação ao que se quer dela. É comum ouvir de respostas ou de comentários desses jovens e de adultos sobre política ou economia ou cultura que se esvaziem as palavras de forma tão rápidas. Mas não é comum ouvir de um taxista fincado nesse sertão, que talvez nem tenha ouvido falar de Sócrates ou Platão ou Luiz Marins ou Marx Gehringer sobre o atendimento a seus clientes. Talvez seja comum a muitos levarem seus clientes a motéis e a diversos lugares proibidos de forma sigilosa e só a eles – motorista e passageiros – se guardam o destino e as ações vindouras.
Fico no que é demais sublime sobre o comentário primeiro: o conhecimento que o mesmo tem sobre o tratamento a seus clientes. Homem de boas palavras, de sorriso fácil, de poucas letras, de uso de boné, de barba à la Lula, e uma devoção pelo Padre Cícero e uma jaculatória incansável sobre “meu Deus.” Religioso por demais, todo dia 20 do mês veste-se de luto pela alma do Reverendo do Nordeste e vai sempre à missa. Em cada dez palavras, a expressão Meu Deus está em nove. O táxi é a sua empresa móvel, onde os passageiros clientes vips que nutrem de uma boa e salutar conversa e um tratamento de fazer inveja a qualquer um. É daquelas pessoas que não deixa o cliente na mão, abre a porta do carro, deixa o cliente a vontade e sabe, por uma experiência de vida que é preciso estar limpo, perfumado, bem vestido, medidor das palavras que lhe saem da boca, reverenciador, ético. Nunca percebi que leu um livro sobre motivação, programas de qualidade, economia, quais os procedimentos para atrair um cliente comum e um em potencial, essas teorias que vieram do pós-guerra até os dias de hoje sobre essas questões: ele consegue em todos os pontos decifrar, sentado ou acompanhando o passageiro, detalhes para não perder o seu ganha-pão. Parece, à primeira vista, que decifrou as entrelinhas de um bestseller sobre “como dirigir um táxi em pleno sertão” para ser um motorista com diferencial. Ele sabe disso, quem o disse, quem lhe chamou atenção, senão o próprio ou um cliente mais avançado, incomum. É tanto que um cliente lhe alcunhou com o que ficou mais conhecido em Senador Pompeu: Motorista do amor. Motorista que não se conhece em qualquer lugar e amor pelo seu carisma, sua maneira de tratamento, pela discrição nas conversas e na condução a lugares que necessitam da interpretação da imagem dos três macacos sábios que Gandhi sempre levava consigo: não vejo, não escuto e nem falo. Por causa disso muitas esposas, esposos, namoradas e namorados o vêem com outros olhos, mas nada podem fazer: é seu ofício, seu trabalho que dita normas e um passageiro é um passageiro.
“O meu Deus e o Padrinho Padre Cícero que me abençoem sempre e a você bom trabalho e vá com Deus, meu irmão.” Despede-se no final.

sábado, 10 de novembro de 2007

QUEM ESPERA SEMPRE ALCANÇA


”São quatro jogadores, nesta mesa

Frente a frente para jogar (...)

São quatro jogadores, nesta mesa

Dando as cartas, no jogo surdo da vida.”
Xangai, Kukukaya

São quatro pessoas a espera de um ônibus. Quatro felizes almas que buscam, separadamente, o seu destino. A espera torna-se longa. O ônibus certamente está atasado. Não é da primeira vez e acredita-se que não será a última. Mas vale a pena traçar os quatro perfis dessas pessoas a espera de uma condução que as conduzirá a seus destinos. Ao meu ver todas com ansiedade num nervosismo peculiar de quem sempre está apressado, numa agonia incontida, porque se sabe que esperar não é uma virtude do brasileiro, que, aliás, espera tanto e em tantas ocasiões, como filas de banco, de lotérica, da esperança de dias melhores, da aposentadoria ou do amor que nunca veio.
Uma delas espera ansiosa que o ônibus venha logo porque a mãe que ficou na cidade destino vai estar só, doente e necessitada da presença da filha; não espera sentada, porque cansa e maltrada os nervos. Trás nos gestos e na voz característica de uma jovem que vive todos os minutos da vida e os acha preciosos, não pelo fato de deixar logo o lugar de onde estava, mas para estar sentada numa poltrona do ônibus e que a levasse para o destino final e que fosse bem. Em casa a mãe com problemas de artrose a esperava, acredita-se, também ansiosa. Certamente a filha era muito importante, não pelo fato de ser somente filha, mas por ela ser amável e carinhosa. De todas as pessos a espera, era a mais inquieta, nervosa, caminhando de um lado a outro, olhando de quando em vez para o sentido de onde o ônibus vinha. Sorria de vez em quando, era verdade, mais para esconder o fato da espera. Deixou na cidade de origem o seu amor recente, entregue aos dias da sua ausência, pelo menos por um dia e meio, não sabendo ele que esses dias iriam ser estendidos por uma folga do trabalho ampliada. A segunda personagem, também mulher, não espera em pé, pois consegue deixar estar sentada e aguarda o ônibus também nervosa porque precisa estar numa reunião de empresa, embora a reunião seja ainda para outro dia; nesse tempo então de ansiedade e palavras saltitantes aos lábios e ouvidos, ela deixa escapar o passado da vida, onde tivera vivido dias de angústia e aquele trabalho atual a fazia de uma pessoa realizada. Achava-se importante por sentir-se útil num trabalho que a elevava como pessoa e como mulher. Aliás, única como vendedora em meio a tantos homens. Sentia-se por deveras envolvida por uma áurea de brilho porque por ser única também o era por uma questão de sobrevivência e por gosto pela profissão. Sua voz, aos comentários aleatórios, eram bem traçada com bastante autonomia, todavia a espera pela condução a trazia de volta pelo desespero da espera e do cansaço antecipado. No fragor dos seus jovens anos e do seu olhar alviçareiro traduziam numa mulher preparada e sabedora do que queria. A terceira mulher triangulava o cenário numa calma sem medida em relação as outras duas. Não falava, não transpirava e nem sequer se maldizia. Para ela em relação as outras o ônibus estava ainda no horário. Trabalhava representando produtos de beleza. Certamente representar beleza parecia precisar de nervos, de aparentar calma e deixar no semblante traços dos produtos como uma excelente representante dos mesmos. Outra pessoa, claro, era eu que fechava os quatro numa espera que, pelo tempo, estava nos deixando agoniados. Resultado: o ônibus tinha ficado pela estrada com defeito. Esperava-se então outro que estava por vir, daí a demora incondicional.
São quatro personagens com destinos semelhantes, embora com finais em separado. Do meu ponto de vista, do meu ângulo quase incontrolável, as vejo num diferencial medido. São jovens, são mulheres, são pessoas com suas vidas bem delineadas em busca sempre do amanhã. São viajantes como eu e são esperançosas como tantos outros. Num jogo de cartas na mesa, como na música acima, e aí me incluo, são quatro jogadores envoltos da mesa da vida em busca de ganhar, de vitória e de dias que sempre sejam páginas preenchidas por letras vistas e revistas. São quatro jogadores com palavras fáceis num jogo surdo da vida, embora as duas primeiras não parassem nunca de trazer sons aos tímpanos. São quatro pessoas com olhos de futuro, com mãos crispadas pelo gosto apetitoso pelo avanço dos dias e pela busca dos sabores deles. São quatro viajantes com sorrisos fáceis, apesar da espera agoniada, embora no fundo se saiba que quem espera sempre alcança, independente do tempo.
O ônibus chegou para abrir o sorriso de todos.

sábado, 3 de novembro de 2007

CRUZES NA ESTRADA


“Caminheiro que passas pela estrada,

Seguindo pelo rumo do sertão

Quando vires a cruz abandonada,

Deixe-a em paz dormir na solidão.


Que vale o ramo do alecrim cheiroso,

Que lhe atiras nos braços ao passar,

Vais espantar o bando buliçoso

Das borboletas, que lá vão pousar.”

(Castro Alves, A cruz da estrada)


Belchior, cantor cearense, tomou emprestada a epígrafe de Castro Alves acima para uma canção sua: Aguapé. Aproveito, então, da mesma epígrafe (A cruz da estrada) para abrilhantar minha observação dessa semana. O dia é de Finados, referência aos nossos mortos e tento compreender tantas cruzes pela estrada por onde passo semanalmente. No trabalho do grande poeta baiano, ele fez referência ao escravo, onde na solidão da beira da estrada ele repousa absoluto abraçado à sua liberdade. Liberdade esta da morte que lhe apossou enfim nos seus últimos suspiros.
Fazendo uma alusão nessa candura de palavras, também seguindo pelo sertão, não vou, claro, tentar tirar o sossego dos mortos que lá repousam, mas vou despertar os vivos que cá estão. Nem tão-pouco atirar alecrim, mas ao invés disso atiro-lhes esses pensamentos para tentar reparar os absurdos que acontecem nas estradas do nosso país. Porque se há cruzes na estrada, houve violência que norteou esses marcos. Atiro-lhes nos seios desses serem insepultos e abeirados uma compaixão, sem sequer saber como foi a causa da morte. Ademais não é preciso fazer uma análise ou estatística, pois os atropelamentos, os acidentes falam por si em diversos ângulos. Falam sem parar devido a inconsciência de muitos, das adversidades de cultura, dos absurdos de que o mal só acontece com o outro. Os sertanejos, mais precisamente plantam essas cruzes numa junção de dor e lembrança do seu morto, como também um alerta para os que por ali trafegam. Por mais que haja aplicação de multa, de advertência, de melhorias nas estradas, não há uma estagnação nos acidentes mortais. Quantas cruzes ali estão e que serão fincadas a cada ano?
Sim, “que vale o ramo do alecrim cheiroso”, porque dele não há mais importância. Devemos atirar mais condolências, perdão e promessas de mais prudência. Despertar, não os mortos nos seus sufrágios, mas os tais vivos que matam, que maltratam e limitam a vida de muitos. Despertar nossas consciências e sermos mais humanos e ao invés de “alecrim” se possa atirar vida e esperança.
“Vais espantar o bando buliçoso/Das borboletas, que lá vão pousar”. Aludir às borboletas como seres indefesos e coloridos aos olhos. Seres frágeis que abrilhantam e sugere-se companhia nas mais puras das solidões. Quando os carros passam, os homens passam ao largo e ao léu, as cruzes ficam para trás esquecidas, ignoradas, sem alecrim e sem paixão. Seria preciso um dia, num amontoado deles, para lembrar delas abandonadas à beira da estrada ao sol e ao sereno. Lembrar que antes havia luzes e as borboletas não tinham onde pousar. Antes havia vida e alegria e encanto e amor e sofreguidão, mas hoje somente oração.
Diminuir as cruzes seria um passo, mas bem melhor diminuir os sofrimentos de quem fica. Diminuir as atrocidades e trocar essas cruzes pela reeducação e aumentar a cultura e a consciência do homem que se esconde por trás de um volante, e quem sabe ler mais Castro Alves e ouvir Belchior nas suas interpretações bem mais motivacionais.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

SEU MUNDINHO


Km 20 ou Senhor do Bonfim, distrito de Senador Pompeu, é uma localidade simples, cortada pela estrada do algodão que liga as regiões do Cariri, Centro-Sul e Sertão Central à capital Fortaleza. É neste dito lugar que eu desço nas minhas viagens e de onde espero o ônibus de volta. Já fiz amizades com boa gente e numa dessas idas e vindas, apresentaram-me um personagem de encher os olhos e de nunca esquecer, principalmente para nós que fotografamos o momento pelas lentes dos olhos e de guardar na memória passagens diversas. À primeira vista achei-o estranho pela sua formação, pelo seu biótipo: no rosto estampavam-se as cavidades laterais das faces de uma magreza, que para ele (depois percebi) era de uma fortaleza sem medida. Logicamente o panorama do corpo em todas suas linhas comungava com o que se via nas faces do seu Mundinho. Apresentou-se assim alvissareiro, alegre, saltitante. É verdade. Nunca o tinha visto pelo tempo que permaneço nesse lugar semanalmente. Um personagem daquele que a gente ver no meio da feira, como se vendesse pomada para mordida de cobra, embolador ritmado sem parar de falar:
“Senhor você não me conhece, mas o que vou lhe dizer está aqui e ali bem perto de você. Para se curar de vez contra tiros e olho grande, tome três goles d´água e se benza, isso bem cedo ao se levantar. Assim, sem mais nem menos. Para você ter idéia, tenho cinqüenta e seis anos e mais pareço um menino. Esse corpo que você ver já saltou de andares e no chão pisei com leveza e maestria. Andei com todo tipo de gente, valentões desse Ceará, capangas de coronéis, assassinos dos mais brutos. Tomei cerveja com eles, fumei cigarros atrás do outro e cá estou para contar história. Tenho o corpo fechado por uma fé que carrego passada pela minha avó: três goles d´água e um pai nosso. Nada mais do que isso. Corpo fechado para bala e olho grande, repito. E não sou dos antigos, pois me considero jovem: danço não somente danças de forró antigo, nem xaxado, nem valsa, nem xote ou maracatu. Danço também essas danças de hoje como ninguém: na boquinha da garrafa, a bundinha (nisso fazia o jeito da dança numa leveza ao mesmo tempo cômica).
Senhor, não tenho inveja de ninguém porque disso não preciso. Não fui à escola, no banco dela não sentei, mas sei as contas de cor, pra testar é só falar. Sei de frente e de trás pra frente, e nem na calçada da escola passei.
Vejo que o senhor, mas antes qual a sua graça? Pois é, também rezo para tirar quebranto, espinhela caída, olho grande e má querença. (Falo então de um joelho meu quebrado por causa de acidente). Não se desespere, vou rezar agora mesmo, e antes que o sol se ponha o senhor não sentirá dor, mas não faz mal lembrar, porque lembrança é coisa que todo homem precisa ter, que tem que tomar três goles d´água e se persignar, porque sem assim falando não dá, não cura, pois veja.
(Estendeu a mão na direção do joelho, cerrou os olhos e com a cabeça perpendicular rezou. Rezou meio contrito, rápido como era o seu jeito de falar).
Pronto, agora sempre tome os goles d´água. Olhe senhor não sou daqui, e sim de Maracanaú, mas dessa região sei de cor como a palma da minha mão. Essa gente toda me conhece e eu conheço ela. E não é sacrifício sempre falar, porque aqui na terra o homem tem seu poder, mas sem aquele lá de cima (tirava o chapéu), não somos nada, pois nEle me seguro e dEle somente temo. Nesse mundo de meu Deus quem não tem no coração o amor, a paz e a caridade de nada tem, mesmo que no cofre e nos bolsos dinheiro não lhe falte. Um dia vai fazer falta nem que seja noutro mundo.
Pois bem, veja senhor o meu corpo que todos pensam que não vale nada. O meu músculo (mostrava o músculo do braço esquerdo) não é um caroço de abacate mas fortaleza, saúde e determinação. Tenho saúde de mil homens e é porque já fiz muita estripulia nessa vida. Bebi demais e também fumei. Tenho essa carteira de cigarros no bolso, mas tem dias que nem me lembro que tenho. Fumo por prazer e não por vício.
E não esqueça você que danço essas danças de hoje: na boquinha da garrafa, a bundinha (e mostrava de novo os tipos de dança, pulando feito um menino, jogando o joelho direito no chão e o esquerdo com o pé apoiado no solo, num pulo como gato).
Não sou um gato e nem tenho sete vidas mas a que tenho dou graças ao lá de cima que me fez viver de novo. Veja senhor esse corte na barriga (levantou a camisa e um rasgo vertical descia de cima a baixo), pois estive quase entregue nos braços da “infeliz”, mas sai dessa e do portão não passei. Tudo dou graças ao lá de cima que sabe que tenho alguma coisa a fazer ainda nesse mundo. E sei bem o que é: levar minha devoção, minhas rezas. Você é de Juazeiro do Padre Cícero? Estive naquele lugar de santo e me espantei com aquela estátua... que coisa enorme, quase nem abarquei o cajado do padre e sequer o chapéu de tão enorme. Também de São Francisco de Assis tenho devoção e acredito piamente nesse seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo...”
O seu Mundinho ainda ia continuar na sua apologia popular, quando o ônibus apontou na curva e quase não deu tempo das despedidas, porém dentro do ônibus rememorei as palavras do personagem para enaltecê-las nessas páginas em branco.

Obs.: imagem ilustrativa: unknownpoets.blogs.sapo.pt

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

AMOR POR UM DIA


De tantas viagens feitas semanalmente, houve uma que para mim foi novidade. Fui fazer um trabalho em Sobral, terra de Renato Aragão e do cantor Belchior, para citar os que acho formidáveis. Uma viagem cansativa, devido o meu curto tempo. Chegar numa segunda-feira, fazer o trabalho durante o dia e voltar no início da noite. Viagem de mais de 1.000 km, ida e vinda.
No ônibus muita gente simples, como eu, e romeiros que iam fazer sua peregrinação em Canindé, e uma pessoa me chamou a atenção, tanto na ida como na volta. Mais precisamente na volta, até porque foi nesse período que descobri sem perguntas e sem abrir sequer a boca, a ida dessa mulher à Sobral.
A viagem foi tranqüila, mas não consigo dormir direito, pois a cada freada brusca imagino coisas terríveis. Não sei por qual razão a gente pensa muita besteira, talvez pelo fato de ficarmos mais experiente ao avançar dos dias e os nervos vão ficando mais aos frangalhos. Muitas vezes vejo crianças nessas viagens e as invejo pela tranqüilidade, pela inocência no seu olhar. Jamais passam pela suas cabeças um desastre, um acidente simples ou fatal. Dessa vez não vou me jogar nas mentes delas porque assim fazendo uma simples crônica semanal como essa não terá espaço de tantas coisas lindas que teria que colocar aqui.
Em Sobral vi que o clima da cidade é muito quente, até porque início de outubro tem essa peculariedade do interior nordestino. Fiz o trabalho, conheci o centro da cidade e até deu tempo assistir a um filme no cinema local. Duas salas de exibição e a película, um suspense, me ganhou a confiança e assisti ao filme sozinho, numa sala que parece ter sido reservada só para mim.
De volta ao ônibus, vejo a mulher do início da viagem. Suas características: jovem, bonita e intranqüila, peculiar de quem é jovem e da condição porque foi até ali, como eu, só que com outro objetivo. O dela, ver o marido. No celular em que recebeu a ligação disse que tinha esquecido o lençol, lembrança devido o frio que fazia no ônibus, antagonicamente ao clima lá fora. Achei interessante a viagem dela em busca de braços e carinho, nem que fosse por um dia. Pergunto a mim mesmo se tinha valido a pena, e me vem à mente a frase imortal do poeta Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena.” Sim, tudo vale a pena para ver a quem ama, nem que seja no fim do mundo, e o que tem numa distante de 1.000 km que separe dois amores? Dizem que a distância separa nos seus dois sentidos, talvez por isso essa busca incansável da esposa para ver o marido, despi-lo em todos os sentidos e ver sua alma, na brancura do dia e na escuridão das horas. Por isso também há aquele gosto saboroso de matar a saudade e o amor ser feito com mais gosto, onde se foge da rotina, do dia a dia desgastante. Rever a pessoa querida depois de muito tempo e se um dia não deu ainda para matar a saudade, pelo menos estreitou com gosto o amor febril. Um dia passa muito rápido, mas se nesse período os dois vivessem intensamente as horas, paulatinamente esvaindo-se pelos dedos, cabelos, suores e janelas, seria um dia que ficaria marcado nas suas vidas e tudo que fosse de mundano, tudo que fosse de tristeza e tudo que fosse pequeno, nada seria mais importante de que os dois corpos num só.Tenho a certeza absoluta de que a viagem de volta, para ela, foi uma das mais significativas, mesmo esquecendo do lençol que lhe tiraria o frio e lhe deixaria a lembrança da fragrância do amor no quadrante do tecido.
Obs.: foto que sugere certa posteridade, como deveria ser um casamento.

sábado, 6 de outubro de 2007

MEMÓRIAS


Volto agora para o interior do ônibus e chama-me a atenção um casal e uma senhora. O casal está junto num lado e do outro, a senhora. Cabelos brancos, traços de quem viveu muito e ali está meio que tranqüila, olhando de vez em quando para o casal. Possivelmente é mãe da mulher, porque numa lógica vista a pelo menos cinco metros de distância, é uma raridade o homem conduzir sua mãe para uma viagem. A esposa sempre tem o poder, e de imediato veio-me à memória a minha mãe. Vi naquela idosa, na poltrona tão perto e ao mesmo tempo tão distante, a imagem idosa da minha genitora, e quando percebi o olhar dela a fitar a “filha” com os olhos de quem busca refúgio, conduzi-me por uma analogia em que foi preciso naquele instante.
Minha mãe há muito que sofre do mal de Alzheimer, acometida devido a uma hereditariedade, que me lembre começou com o meu avô. Interessante que em todas as pessoas com cabelos brancos que me deparo, logo me vem ela.
Ali, então, a senhora ao lado do casal, vejo que há dois mundos: o da velhinha, calada, mas aparentemente ativa, pensativa, conduzida. Religiosamente trago à tona a epístola de São João, no Capítulo 21, versículo 18, “Quando você era moço se aprontava e ia para onde queria. Mas eu afirmo a você que isto é verdade: quando for velho, você estenderá as mãos, alguém vai amarrá-las e o levará para onde você não vai querer ir.”
O da filha, moça, jovem, com muito pra viver, ao lado do amor, está ali, de vez em quando bipartida pela atenção do marido e da mãe. De um lado a memória por findar e por outro uma que teima em paginar histórias e cuidados.
Com meus sentidos mais aguçados, entro nas mentes das duas e traquino nos seus pensamentos numa dimensão de dois mundos, sendo o primeiro da mãe: “Estou aqui, ao que parece sentada numa cadeira ou poltrona, num balançar que enjoa. Não tenho certeza onde estou realmente, mas vejo passar por mim vultos de coisas verdes e de um azulado céu. Apalpo, agora, minhas pernas cobertas por um vestido de chita, e pensando nisso, nunca gostei de vestir esses tipos de tecido. Nunca fui, lembro-me razoavelmente bem, de me pintar, de colocar coisas decorativas nas minhas feições e nem vestidos coloridos, e hoje me põem esse modelo que odeio. Mas não posso nada dizer, porque eles pensam que estou esclerosada e não tenho mais querer. E para não contrariar nada digo. Sigo vestida neste vestido de gente do sítio. Sítio, sítio, não posso esquecer que sou de lá, mas nunca gostei de morar por aquelas bandas, que nem sei para que lado fica. Mas, para onde estou indo, para onde estão me levando nesse chacoalhar que me enerva e me dá enjôo? Olho agora para aquele casal ao meu lado, e arregalo meus olhos para enxergá-los melhor. Tento lembrar deles, e agora me vem uma dúvida: meu filho ou minha filha?”
Mundo 2: “Mamãe não parece muito bem, a cada dia está pior. Espero que essa viagem traga-lhe melhores ares, que se sinta mais reconfortada. Não entendo porque às vezes ela diz coisa com coisa, fica muda, sorrir sozinha. O que se passa na cabeça dela? Talvez muitas coisas que ela mesma nem saiba. Estou preocupada, a sua idade já está avançada. Às vezes sinto que ela me olha assim como se não visse ninguém, que não sabe a quem está olhando. Para ela vir para essa viagem até que não deu trabalho e está ali, se tocando, passando a mão no banco vizinho, olhando para a paisagem com olhar meio que nostálgico. Será se ela está sentindo falta de papai?”
Depois dessa passagem pelos dois mundos totalmente opostos, onde um pensa em não querer nunca o mal do esquecimento e o outro que imagina a mãe naufragada nele, fecho os olhos o restante da viagem. Não me lembro se sonhei, mas senti-me reconfortado nos braços da minha mãe, mesmo ela não sabendo mais quem sou.

sábado, 29 de setembro de 2007

PAISAGEM


Mais um dia, mais uma semana nas viagens em que me envolvo com meu trabalho, com o ônibus e com a paisagem. Paisagem esta já bem conhecida. Mas hoje tenho uma vontade danada de ficar calado, de ficar introspectivo e vislumbrar somente a paisagem, como também da janela tirar fotos. Tenho uma sensibilidade ótica incrível por casas antigas, da mais simples a mais sofisticada. Cada uma que me aparece na beira da estrada ou longínqua, solitária num sopé de serra, à beira de um açude, escondida por frondosas árvores, chamam-me a atenção. Olho e me vêm à mente locais pitorescos, diferentes, simples e que me invadem numa forma de imaginar aquelas pessoas morando ali, sua rotina, seus dias. Muitas vezes vejo gente nas janelas, no sopé da porta, varrendo o terreiro, no oitão. Outras já velhas, sentadas em cadeiras preguiçosas, pitando, esbaforindo ao ar fumaças antigas. Veio-me à mente o poema de Vinícius de Moraes e Chico Buarque: “Gente Humilde”, onde diz:
Tem certos dias/ em que eu penso em minha gente/ e sinto assim/Todo o meu peito se apertar/Porque parece/Que acontece de repente/Feito um desejo de eu viver/Sem me notar/Igual a como/Quando eu passo no subúrbio/Eu muito bem/vindo de trem de algum lugar/e aí me dá/Como uma inveja dessa gente/Que vai em frente/Sem nem ter com quem contar/São casas simples/Com cadeiras na calçada/E na fachada/Escrito em cima que é um lar/Pela varanda/Flores tristes e baldias/Como a alegria/Que não tem onde encostar/E aí me dá uma tristeza/No meu peito/Feito um despeito/De eu não ter como lutar/E eu que não creio/Peço a Deus por minha gente/É gente humilde/Que vontade de chorar.
Como no poema, vejo essas casas humildes, essa gente simples, sentada na varanda, por sob uma latada de palha, esperando a morte, mas antes olhando o mundo da estrada, do movimento, das andorinhas e sentindo o vento nos cabelos.
Bem longe avisto outras casas sumidas e imagino seus habitantes na luta pela sobrevivência. Cá na cidade se tem o ditado de que se precisa matar um leão por dia, e no campo, que bicho se deve lutar para não ser devorado?
Vejo que mesmo assim com humildade e tudo, sorrisos, uma satisfação e “que vão em frente” sempre, comparo ao que disse Euclides da Cunha: “O nordestino acima de tudo é um forte”. Uma fortaleza de fazer inveja, mesmo que nos olhos se marejem lágrimas de dor, ele não desiste nunca.
Voltando ás casas, olho-as todas, e quantas de janelas abertas para o mundo e no avançar do ônibus, ainda enxergo no seu interior, imaginativamente, palpitar de corações. Lembro-me que vi uma criança simples, de pés descalços, uma boneca nos braços, um olhar no mundo à sua frente, e imaginei o futuro dela. Que futuro, para onde iria, os sonhos a realizarem. Vejo agora, também, uma escola no alto. Hora do intervalo, crianças jogando bola,e penso: quantas dessa gente vão dali sair um doutor, um político, um empresário ou mais um nordestino em São Paulo?
Volto os olhos para o interior do veículo e observo que poucas ou nenhuma pessoa têm olhos para essa paisagem. Cansadas?

sábado, 22 de setembro de 2007

MÃE CORUJA


O ônibus toma o asfalto de ida, resfolegando na estrada do algodão com vontade, numa velocidade compatível, e cá dentro estou mais uma vez em busca do meu destino semanal. Ao meu lado, hoje não tem ninguém, ainda, mas à frente vão mãe e filha. Fico calado, meio que sonolento, numa manhã bonita, onde pela janela do veículo se ver uma paisagem bucólica, entre um verde que teima em fincar, malgrado sol escaldante do início de agosto. Entre um olhar na paisagem e um nas pessoas em frente, fico a imaginar quanto essas duas naturezas se assemelham: uma misteriosa pela mata fechada e seus habitantes irracionais, e outra no seu mistério feminino que encanta com suas personalidades irretocáveis.
Detenho-me nas duas e suas conversas insuspeitas. A filha envolta em lençol, devido o frio do ar condicionado, e meio que enjoada. A mãe com ar super preocupada, tenta saber o que é. A filha, sabedora de que a mãe tem aquele estilo exagerado de preocupação, tenta acalmá-la, mas com um gosto de vê-la daquela forma e diz, num tom de meninice – pela aparência ela tem seus 25 anos – que lhe falta o ar. Numa atitude de que o mundo estava para se acabar ou o ônibus por virar, a mãe levanta-se num impulso, diz que vai parar o veículo, que as duas desceriam, que não seguiriam a viagem. Mãos na cabeça, mas antes que ela chegasse à cabine do motorista, a filha chama pela mãe aos sorrisos.
Essas cenas se repetem por dezenas de vezes, e quem já estava enjoando era eu. A mãe naquele estado de misericórdia, apalpando a filha, ajeitando-a nos braços, e me vem à mente, Pietá. Pietá de duas mulheres, uma que chora, outra que rir. Não há piedade nisso, é claro, mas há abuso. Viajo, então, pelo passado de ambas e vejo um cenário de filha com seus dois, três anos. Como seria essa cena? O ônibus certamente não passaria da primeira curva e o mundo estaria em pavorosa. A mãe com a filha nos braços correria pelo corredor feito louca e os passageiros em olhares de espantos, ficariam embasbacados e sem ação.
Volto da minha fértil imaginação e sorrio sozinho. A mãe olha para mim como se adivinhasse meu sorriso e exclamou, não para mim, mas para ela mesma: “o que uma festa não faz, bebeu demais.” A filha estava de ressaca e sentia na cabeça e no corpo os maltratos da noite sem dormir e ali, bem cedo da manhã, jogava na cara da mãe o seu enjôo ainda que no balanço da viagem.
Volto à minha imaginação: noite de festa, de calores, de abraços e de amor. Viagem materna, de suores e de horror. Isso para a mãe porque a filha gozava da situação em ver sua companheira de viagem assim, envolvida por uma preocupação de mãe coruja que não deixa seu filhote sentir uma dor: olhos redondos e sentidos aguçados. Mas para nós que estamos assistindo aquela agonia em família não tem como escapar a um comentário lógico: o que uma mãe não faz por um filho ou filha, até se passar por ridícula e se deixar maltratar.
A “criança” dormiu e eu senti-me aliviado, tranqüilo o restante da viagem.

sábado, 15 de setembro de 2007

UMA ATITUDE DE CORAGEM


Entrei no ônibus para mais uma semana de viagem à Senador Pompeu. Que, aliás, é uma cidadezinha de pelos menos 25 mil habitantes fincada no Sertão Central do Ceará. Ir para lá tem que ser a negócio, e esse negócio eu tenho há mais de quatro anos. Mas o povo de lá é hospitaleiro, com orgulho de ter como filho ilustre um dos mais renomados contistas do Estado, senão do Brasil, Moreira Campos.
Sentei-me na poltrona marcada, e lá estava uma mulher. À primeira vista não reparei muito nela, acostumado estava pelas tantas companhias de inda e vinda nessas viagens semanais. Reparei depois até por força de uma conversa simples, amiúde como praxe de quem senta ao lado de alguém, independente do sexo. A fala veio dela, como se estivesse no script: “graças a Deus estou indo embora de Juazeiro do Norte”. Disse a mulher, e foi aí que voltei o olhar e a vi, sentada ao lado, alta, gorda, jovem com seus lá 21 anos e um olhar meio que penoso pela janela, como se despedisse ou tentasse não arrepender-se do que estava dizendo e fazendo. Fui obrigado, juazeirense que sou desde que nasci, a perguntar-lhe o porquê daquele sentimento de revolta por uma cidade tão acolhedora e boa de morar.
“A história é longa...” – disse-me meio que sorrindo e com um suspiro mais que profundo.
Com um ar de graça para que o clima fosse mais propício, rematei: “temos cinco horas de viagem, pelo menos para mim.”
Ela sorriu, e disse primeiramente que ia a uma cidadezinha praiana, perto de Fortaleza e não tinha pretensão mais de voltar. Considerei, assim, que a conversa entraria por um relato importante para um dia ter que começar essas crônicas e que a resolução da moça era forte a ponto de seus olhares rapidamente marejarem. Não quis forçar-lhe nada, até porque não era nenhum profissional de ouvidos alvissareiros ou um psicólogo suburbano. Entre aquele diálogo entrecortado por uma descida ou subida de alguém, uma parada em rodoviárias, ela comia de bolachas recheadas, e eu amigavelmente, adverti-lhe que a mesma engordava, em tom de brincadeira, uma vez que ela já era gordinha. Num sorriso coloquial e num tom mais jovial, considerou que comer era uma forma de esquecer os problemas ou atenuá-los. Ofereceu-me da guloseima, mas preferi permanecer com a minha advertência.
“Deixei o marido”, disse-me assim arrebatadora. “Ontem mesmo vendi o meu negócio, uma escola de ensino infantil, não agüentava mais.”
Debulhou um rosário de acontecimentos na sua vida, a mostrar-me a razão de estar ali, sentada numa poltrona de um ônibus com o destino, talvez, incerto, mas de uma tomada de atitude corajosa e irreparadora. Há muito que chamava a atenção do marido por não agüentar mais viver com ele, porque nunca gostara do mesmo, porque sua vida tinha sido tolhida da meninice, da juventude, da adolescência para viver submissa a um capricho do sexo, que, aliás, fazia por fazer, sem gosto, sem tesão. Ele não queria ouvir, fazia de ouvido mercador, e o tempo passava, e veio assim, a decisão solitária de amanhecer o dia, na ausência do marido, e fugir. Vendeu a escola sem ele saber, sem a mãe, parente nenhum, apenas as professorinhas e seus colegas. Sentia-se aliviada ali, sem os seus por perto, livre, solta, como se a liberdade apenas existisse na sua vida e um destino que lhe esperava longe de braços abertos.

Resmunguei um “hummmm” demorado e fiquei a pensar na coragem da jovem. Casada aos 14 pela imposição dos pais, sem gostar do esposo, sentia-se sem uma vida rotineira como os dos jovens. Sempre gostou da vida agitada e o marido, mais velho 13 anos, não. O teatro foi sua vida, apesar de ser amadora, mas que gostava de escrever peças, até tinha contos rabiscados e engavetados. Recusara convite para ir à Portugal através de um amigo da companhia de teatro. Agora se sentia bem, apesar das últimas horas vividas, e ia em busca da felicidade. Para trás uma vida que não a queria mais e na frente uma estrada asfaltada e desconhecida. Um casal amigo estava a sua espera.
Num trecho da viagem, o celular tocou, como a lhe dizer que o mundo passado não acabara e lhe fazia companhia naquele aparelho. Amigas compartilhavam sua coragem. Nessas horas nenhuma lágrima brotou dos seus olhos.
Emudeci com relação àquela história e cerrei os olhos e imaginei o futuro daquela jovem: fazendo teatro, escrevendo, com uma nova escola em terras distantes e desconhecidas, e certamente um novo amor. Um novo amor, quem sabe, já não estaria a lhe esperar, maldei.