Negro. Negro como a graúna. Negro como o buraco negro. A negritude em pessoa. Lembro-me, quando o vi, dos escravos sem os seus senhores. Livres, idiossincráticos, sós e em grupos. O nome, não sei, mas poderia ser um José, mas pelo que notei, gostaria de ser chamado Stephen, com “ph” para ser mais real. O corpo magro, as marcas da indecência, os nós na pele pelo estrago dos dias e das noites, a sujeição pelo que fazia, sentia. Negro ou negra, tanto faz ou tanto fez, mas que mostrava um ser humano aos farrapos, entregue ao desvario do sexo, se é que haveria alguém disposto a amá-lo em todas as formas possíveis e imagináveis.
Quando o vi pela segunda vez na calçada do ponto, ou sem ponto mesmo, parecia enxotado pelos seus companheiros de profissão porque estava podre, sem banho pelo menos por uma semana, a mesma camisa amarela de sempre, o mesmo tétrico chinelo preto, a bermuda até os joelhos. Fez uma pose retorcida, escorado num poste, com o rosto para o sol de rachar, somente para acender um cigarro. Naquele momento não era José, nem Stephen, ninguém, ou alguém muito longe da realidade. O cigarro aceso num lampejo, num desequilíbrio de corpo trouxe-me à ideia de que aquele mundo do negro gay estava além. Sozinho, maltrapilho, sob um sol do meio dia, sem sequer notar a penetração insofismável do escaldante astro rei era um desequilíbrio dos mais variantes. Passou-me, então, pela cabeça a sensação espasmódica de que aquele sujeito não duraria tanto na vida.
Temia vê-lo pela terceira vez, e certamente estaria mais na sarjeta, entregue à negritude da noite, duas noites numa só. Se pudesse, de longe, ver apenas os dentes na brancura já amarelada pela nicotina seria muito. Certamente, como dois mais dois são óbvios, Stephen talvez nem fosse mais Stephen. As corsas, os cachorros, os homens impiedosos trariam o negro na ponta do chicote como muitos anos atrás. Se pela cor da pele, se pelo que escolheu de sexualidade, se pela tristeza dos dias, se pela vida que lhe fechou as portas, esse piedoso ser jazeria insepulto nas calçadas sem dor e nem piedade.
Talvez por tempos, quando eu passasse pelas ruas no meu rumo diário, num futuro qualquer, realmente, já o negro não existiria. O cigarro lhe tragaria a vida em sorvos e alvejantes fumaças a enamorar o ar da noite. Certamente seus colegas de profissão nem sentiriam a sua falta, porque o Negro José, gay por profissão, imundo pelo desvario, sempre com a mesma roupa, de amarelo-ovo, de bermuda encardida, as unhas vermelhas escondendo a sujeira, a cabeleira descuidada, a pobreza escaldante nos gestos, não era ninguém que ameaçasse os seus parcos ganhos noturnos e libidinosos.
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